A se concretizar o anunciado encontro entre Lula (PT) e Donald Trump, será possível enfraquecer o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e a ala mais extremista do governo norte-americano, com impacto no modo como a Casa Branca enxerga as eleições brasileiras de 2026. A análise é de Roberto Abdenur, embaixador do Brasil em Washington entre 2004 e 2006, em entrevista a CartaCapital.
Para o experiente diplomata, não importa o local da reunião — poderia ser um país neutro, como Malásia e Itália, ou mesmo na residência de Trump na Flórida. Abdenur avalia que a agenda será positiva mesmo que não produza resultados concretos imediatos, uma vez que reduzirá a influência de visões contrárias ao Brasil no governo dos Estados Unidos.
Segundo o ex-embaixador, Lula tem um amplo leque de opções a discutir com Trump para reverter o tarifaço aplicado sobre as importações brasileiras: da relação com as big techs a taxas comerciais, passando por terras raras e data centers.
“Por trás das atitudes do governo americano, há um desiderato de debilitar o governo Lula e gerar condições para que em 2026 seja eleito um governo submisso aos Estados Unidos”, afirmou Abdenur. “Agora, essa disposição de Trump de falar com Lula, se for bem aproveitada, pode jogar isso fora, inverter o jogo e fazer com que os Estados Unidos e o Brasil passem a ser parceiros.”
Roberto Abdenur tem uma rica trajetória diplomática: chegou ao Itamaraty em 1963 e se afastou em 2007. Testemunhou da Guerra Fria à invasão do Iraque, passando pelo fim da União Soviética.
Como representante da gestão Lula em Washington, teve a complexa tarefa de reduzir a resistência da Casa Branca ao primeiro governo de esquerda do Brasil pós-redemocratização. O resultado foi positivo: o petista, antes visto apenas como aliado de Fidel Castro, construiu uma relação harmoniosa com George W. Bush.
Leia os destaques da entrevista:
CartaCapital: A reunião pode acontecer em um local neutro, como Kuala Lampur ou Roma, como se cogita?
Roberto Abdenur: Fala-se até sobre a hipótese de Lula ir a Mar-a-Lago, o que seria extraordinário, um gesto muito grande de Lula ao deslocar-se especificamente para ver Trump. De outro lado, um gesto de Trump ao receber Lula em sua casa.
É uma hipótese que me parece um pouco longa demais. Não importa onde ou quando seja o encontro — claramente não será na semana que vem, porque está sendo preparado.
É importante que Trump tenha dito aquilo, que tenha intercalado no discurso perante a Assembleia-Geral da ONU essas referências positivas e súbitas a Lula.
CC: O que a postura de Trump indica sobre esse encontro?
RA: Vejo isso tudo com um otimismo muito cauteloso, porque Trump é uma pessoa imprevisível, é impulsivo e muito emocional.
Ele disse que só negocia e só se entende com pessoas de quem gosta. É um grave erro, porque em política externa você não pode se limitar a conversar com chefes de governos dos quais você gosta. Você tem de falar com quem é necessário falar, com quem há interesse do seu país em jogo, seja ou não uma pessoa agradável para você.
Veja essa grande anomalia na política externa americana que é o fato de Trump adorar e respeitar muito Vladimir Putin — de maneira inusitada, porque não há nenhum outro chefe de governo por quem ele tenha uma atitude pessoal tão positiva, a ponto de ter virado de cabeça para baixo a política externa americana.
Trump tem duas peculiaridades na maneira de conduzir política externa. Uma é personalizar as relações com outros chefes de governo; a outra é o que eu chamaria de monetização da política externa.
Ele vê o relacionamento com outros países em termos de um jogo de soma zero, no qual calcula, às vezes até financeiramente, o que a relação oferece, o que ela pode oferecer a mais, o que os Estados Unidos estão dispostos a conceder, o que que eles querem exigir a mais dos outros países.
Contabiliza a favor dos Estados Unidos não apenas gastos financeiros, como foi na época de Joe Biden o envio gratuito de armamentos para a Ucrânia. Trump agora quer mandar armamentos para a Ucrânia via União Europeia, vendendo esses equipamentos.
E no caso da Europa e da Otan ele cobra dos interlocutores o que os Estados Unidos já contribuíram ao longo da história para sua segurança. São coisas muito peculiares. É inédito na história da diplomacia um chefe de Estado, ainda mais de um país tão importante, conduzir a sua política externa com base em preferências pessoais e em cálculos de vantagens financeiras palpáveis.
O embaixador aposentado Roberto Abdenur, em 2013, em uma audiência na Câmara dos Deputados. Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
CC: O que o Brasil pode oferecer na conversa com Trump?
RA: Há um escopo muito amplo de áreas em que o Brasil pode trabalhar positivamente com os Estados Unidos em benefício de ambas as partes.
No caso das big techs, que são um apoio a ele — e ele as apoia de maneira quase incontida —, o Brasil não deve deixar de regulá-las. Ao contrário, isso já está feito. A União Europeia também fez, outros países estão fazendo.
O que o Brasil pode dizer é: podemos cooperar com vocês. O Brasil é um grande mercado para essas big techs e pode cooperar, por exemplo, nos data centers de inteligência artificial. A área de inteligência artificial é interessante e há possibilidades promissoras de trabalho conjunto.
Os data centers exigem uma quantidade absurda de energia elétrica e o Brasil tem um dispositivo elétrico nacional muito rico em opções, muito limpo, e pode oferecer isso aos Estados Unidos.
Pode também dizer que temos as terras raras, que a mineração está aberta a empresas de países estrangeiros e estará aberta a empresas americanas, desde que elas se apresentem em termos competitivos e respeitem as regras do Brasil.
No comércio, o Brasil pode oferecer a redução de tarifas em alguns produtos de interesse dos Estados Unidos. O Brasil é um país muito fechado, muito protecionista, com tarifas muito altas.
Trump disse que o Brasil os trata muito mal, porque está regulando as as big techs e porque aplica tarifas muito altas. Ele tem certa razão, porque, por exemplo, o Brasil aplica tarifas muito altas sobre o etanol americano.
É do próprio interesse do Brasil, em alguns casos, reduzir tarifas de importação, não para os Estados Unidos especificamente.
E o Brasil tem muito a oferecer em oportunidades para empresas americanas e em termos de relacionamento de Estado.
CC: Como fazem China e Brasil…
RA: Uma comparação: quando Xi Jinping esteve aqui na reunião do G20, no ano passado, fez uma visita bilateral oficial. Ao fim dessa visita, ele assinou nada menos que cerca de 30 entendimentos dos mais variados setores. Quantos acordos o Brasil assinou com os Estados Unidos nas últimas décadas? Quase nada.
Veja a diferença entre o que é uma diplomacia muito ativa e criativa da parte da China, que abre áreas de cooperação com outros países, e a atitude passiva dos Estados Unidos, não só em relação ao Brasil, mas de modo em geral.
Os Estados Unidos estão perdendo terreno para a China no mundo inteiro, porque a China está em uma ofensiva comercial, econômica e diplomática extraordinariamente criativa e até generosa em alguns aspectos, enquanto os Estados Unidos estão parados.
Então, é interesse dos Estados Unidos passar a mover-se mais na relação com o Brasil. E eles se incomodam com o Brasil porque o Brasil é um país grande que está resistindo a eles.
CC: E há o fator da extrema-direita brasileira…
RA: Por trás das atitudes até agora do governo americano, ainda há claramente um desiderato de debilitar o governo Lula, porque é de esquerda, e gerar condições para que em 2026 seja eleito um governo não só simpático, mas submisso aos Estados Unidos, como foi o governo Bolsonaro.
Agora, essa disposição de Trump de falar com Lula, se for bem aproveitada, pode jogar isso fora, inverter o jogo e fazer com que os Estados Unidos e o Brasil passem a ser parceiros.
O Brasil é para os Estados Unidos uma oportunidade diplomática, política e econômica que está sendo maltratada quando devia ser cortejada, como é o caso da China.
CC: A reunião Lula-Trump enfraquecerá Eduardo Bolsonaro e o bolsonarismo?
RA: Considero Eduardo Bolsonaro um traidor da pátria, expressão, aliás, usada também por Lula.
Na medida medida em que Trump passe a ver o Brasil com outros olhos, tende a reduzir-se a influência não só de Eduardo Bolsonaro: existe uma facção no governo Trump que é extremista à direita e que trabalha pela agressividade contra o Brasil.
A minha preocupação no momento é que essa ala, independentemente do que faça ou deixe de fazer Eduardo Bolsonaro, tem um impulso próprio e hostil ao Brasil.
O secretário de Estado [Marco Rubio] não é um extremista de direita, mas um filho de cubanos profundamente anti-castristas. Rubio vê com maus olhos o Brasil porque vê com maus olhos qualquer coisa que seja levemente de esquerda.
Existem esses preconceitos em relação ao Brasil para além do que faz Eduardo Bolsonaro. Eduardo ativou essa facção do governo americano, mas ela tem um impulso próprio.
Não há dúvida: na medida em que haja algum tipo de contato positivo e de entendimento entre Trump e Lula, mesmo que dessa reunião não haja resultados maiores, mesmo que esse encontro se resuma a uma fotografia com os dois sorrindo e se cumprimentando, já será positivo e já tenderá a escantear um pouco essa ala extremista do governo Trump.