Os soldados digitais de Donald Trump – CartaCapital

A assinatura da lei Guiding and Establishing National Innovation for U.S. Stablecoins Act (Genius Act) por Trump, em 18 de julho de 2025, era aguardada desde a emissão em 23 de janeiro da Ordem Executiva sobre tecnologia financeira digital e faz parte da estratégia de recuperar e ampliar a dominação americana, nesse caso no âmbito monetário-financeiro internacional.

Ao definir a estrutura regulatória para as emissões domésticas de ativos digitais privados lastreados em reservas de baixo risco, ela reforça e complementa iniciativas anteriores de utilizar o poder do dólar como instrumento de coerção e sanção no âmbito do sistema de pagamentos internacionais por meio das restrições de acesso de países à rede de transferências bancárias interfronteiras, a Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (SWIFT), e o congelamento de ativos de reserva de terceiros países, configurando uma militarização (weaponization) das relações monetárias. A contribuição deste novo instrumento viria, portanto, de iniciativas que reforçariam a ação desses soldados de papel, por meio da ajuda dos soldados digitais, uma tropa comandada por princípios menos administrativos e mais mercantis e financeiros.

Cabe perguntar: qual é exatamente o objetivo de Trump? Utilizar o ainda dominante poder financeiro dos Estados Unidos, por meio de um novo instrumento digital, a stablecoin, para reforçar o poder do dólar no sistema financeiro internacional. Com isto, solucionaria um dos aspectos mais preocupantes para a preservação da preeminência norte-americana no mundo: a lenta, mas persistente erosão do dólar enquanto moeda reserva e as crescentes possibilidades de constituição de um sistema plurimonetário internacional. Pode funcionar? Discutível. Tanto quanto as medidas destinadas a recuperar o comando produtivo-tecnológico por meio de um instrumento anacrônico, as tarifas, no caso do sistema monetário e financeiro internacional é provável que a iniciativa traga mais instabilidade e acelere a constituição de uma ordem plurimonetária.

Para detalhar a afirmação acima, alguns passos analíticos se fazem necessários. Primeiro, definir a natureza da stablecoin e sua operacionalidade. Em seguida, discutir mais precisamente qual seria o seu papel no sistema de pagamentos internacionais, e a sua relação com os outros meios de pagamentos, inclusive a sua relação com seus competidores: tanto as moedas digitais de bancos centrais quanto stablecoins referenciadas a outras moedas internacionais relevantes. 

A stablecoin é uma criptomoeda predominantemente lastreada na moeda estatal ou título público de referência, emitida por uma entidade privada e com uma paridade definida. É um instrumento de dívida resgatável a qualquer momento pelo seu valor de emissão e em princípio não tem rendimentos. A garantia de seu resgate é dada pelas reservas, oriundas da subscrição do instrumento pelo comprador e administradas pelo seu emissor. Enquanto representação digital (token) da moeda subjacente, a stablecoin é criada e administrada pela tecnologia do blockchain, que lhe confere, em tese, integridade e inviolabilidade e possui duas características importantes: o anonimato e o baixo custo de transação. Importante destacar que as stablecoins, a despeito de serem emitidas com a mesma tecnologia, diferem essencialmente das criptomoedas que não possuem lastro, têm oferta fixa e derivam seu valor da escassez relativa, como é o caso da bitcoin.

O anonimato de uma moeda privada, com a privacidade dos cidadãos e a redução do controle governamental sobre o dinheiro, têm sido as qualidades enfatizadas pelos adeptos da extrema-direita, incluindo a administração Trump, para ressaltar a superioridade da stablecoin ante as moedas digitais, públicas, dos bancos centrais.

Em janeiro de 2025, Trump assinou a Ordem Executiva 14178, proibindo explicitamente a criação, a emissão, a promoção ou a implementação de qualquer moeda digital de banco central (CBDC) nos Estados Unidos. Ou seja, menos Estado, menos regulação e menos fiscalização, além de impactos imprevisíveis sobre a política monetária. A despeito de contraditoriamente o Genius Act obrigar, em princípio, os emissores a respeitar a legislação antilavagem de dinheiro, cabe ressaltar que um meio de pagamento anônimo, criado à margem da regulação do Federal Reserve (Fed), operando de modo similar ao papel-moeda, mas com potência imensuravelmente superior, se converterá de modo inevitável em um mecanismo de instabilidade, evasão fiscal e facilitação de atividades criminosas.

Para além dos aspectos legais e tributários, há dimensões importantes de operação das stablecoins que lhes conferem uma instabilidade intrínseca, e aqui cabe lembrar que a qualidade de uma moeda fiduciária se baseia sobretudo na sua estabilidade de valor amparada em uma regulação robusta e em instituições que lhes dão suporte, como os bancos centrais. Assim, uma moeda privada terá de garantir a estabilidade de seu valor, de modo distinto daquele que ampara a moeda estatal e a moeda bancária garantida pela primeira, principalmente pelo banco central enquanto emprestador de última instância.

Quais problemas podem surgir na operação das stablecoins com potencial de questionar a estabilidade de seu valor? Se considerarmos a possibilidade de arbitragem de agentes privados, o problema de natureza especulativa na evolução do valor de uma stablecoin, o descolamento da paridade, estaria, em princípio, limitado. Assim, um eventual deslocamento da paridade da stablecoin, um ágio no mercado secundário, por exemplo, motivaria a compra adicional de stablecoins por agentes privados ao emissor, para vender no mercado secundário e apropriar este ágio, supondo obviamente que o emissor esteja disposto a fazê-lo. Esse seria um comportamento previsível em tempos de normalidade, mas nada assegura que este seja exatamente o comportamento em momentos de estresse, com os eventuais deslocamentos massivos de uma stablecoin a outra. 

O principal problema relativo à estabilidade de valor das stablecoins reside na administração das reservas. Os emissores de stablecoins operam como se fossem bancos nos seus estágios primitivos, ou seja, emitem a stablecoin como contrapartida das reservas recebidas e as administram. Por pressão do lobby de bancos e instituições financeiras tradicionais, o Genius Act vetou o pagamento de juros nas stablecoins, embora esse veto já esteja sendo contornado com oferta de recompensas. Assim, não pagam juros sobre a emissão, mas podem obter rendimentos com a aplicação das reservas. Em decorrência, a rentabilidade de uma stablecoin qualquer se assemelha a um ganho de seignoriage, dependendo exclusivamente da rentabilidade que o emissor possa obter na aplicação das reservas. Aqui surgem os dois problemas clássicos da intermediação financeira: o da liquidez, pois os instrumentos devem ser resgatados ao par e imediatamente, e o da solvência, porque os ativos comprados pelo emissor devem ter riscos negligíveis. 

Uma stablecoin capaz de cumprir os requisitos de liquidez e ausência de risco deveria ser lastreada em moeda fiduciária estatal ou, no limite, em títulos públicos de curto prazo. Esta seria a composição ideal, mas a ausência de uma regulação robusta e consolidada levou a uma composição de reservas mais diversificada, entre os maiores emissores dos EUA. Embora em percentuais reduzidos, até a regulamentação do Genius Act era observada na composição das reservas desses emissores, além de dólar e T-bills, a presença de moedas estrangeiras, certificados de depósito bancários, comercial papers, ouro e até bitcoins. 

O Genius Act tornou esta composição mais restritiva, embora sem especificação quantitativa, definindo as reservas como papel-moeda dos EUA, depósitos no Fed, depósitos à vista em instituições seguradas, título do Tesouro até 93 dias, acordos de recompra de títulos do Tesouro e fundos do mercado monetário. Por sua vez, permitiu a inclusão nas reservas de títulos ou outras stablecoins lastreadas em instrumentos monetários e, ainda, de depósitos à vista em moedas estrangeiras na rede bancária. Ou seja, manteve nas reservas o risco privado e de descasamento de moedas.

O problema da liquidez pode se tornar crítico para um emissor de stablecoin a partir de uma crise de confiança, na ausência de um emprestador de última instância, guardando semelhança com as crises dos primórdios do sistema bancário — das quais, aliás, os EUA são o melhor exemplo, antes da existência do Fed. Evitar as crises de liquidez das stablecoins supõe uma regulação muito estrita que possa minimizar os riscos de diversificação das reservas, sobretudo em momentos de grande otimismo que, exatamente por isso, possam levar ao relaxamento das margens de segurança, construindo um “momento Minsky”. As práticas do sistema monetário-financeiro norte-americano, crescentemente desregulado, como evidenciado na crise financeira de 2008, além de um caráter especulativo profundo, indicam uma burla recorrente às normas regulatórias. 

Diante desse pano de fundo, não seria leviano supor problemas no mercado de stablecoins. Com o envolvimento de bancos tradicionais nesse mercado, uma crise tem potencial para se tornar sistêmica. E com a recente ordem executiva de Trump de 7 de agosto, que visa permitir aos planos de previdência 401(K) investir em criptoativos, há risco de as aposentadorias dos trabalhadores norte-americanos virarem pó. O colapso do Terra USD em 2022, que eliminou quase meio trilhão de dólares do mercado digital, demonstrou como rapidamente falhas regulatórias podem causar efeitos devastadores.

Do ponto de vista internacional, a proposta da administração Trump é reforçar a centralidade do dólar enquanto moeda reserva, utilizando para isto o recurso às stablecoins lastreadas em dólar. A ideia é que possam substituir os fluxos bancários denominados em dólar enquanto meios de pagamento internacionais. As vantagens estariam na rapidez e no menor custo das transações. Por sua vez, o reforço ao dólar viria da demanda adicional por moeda e por títulos do Tesouro de curto-prazo nos EUA. A despeito do otimismo do Fundo Monetário Internacional (FMI), um fiel escudeiro do dólar e dos EUA, os percalços para lograr esse objetivo são significativos e podem mesmo levar ao resultado contrário. 

Há ao menos três impedimentos para que a administração Trump consiga lograr seus objetivos: a confiança, a integridade e a concorrência. A confiança será um problema que aparecerá magnificado no âmbito internacional. Ao comprar uma stablecoin emitida nos EUA, o não residente nesse país adquirirá um instrumento privado de dívida, a despeito de lastreado em dólares. Caso haja problemas quanto a valor ou mesmo liquidez da stablecoin, não haverá garantia das autoridades econômicas dos EUA — isto é, do Fed — de que o instrumento será resgatado nas condições contratadas. A garantia é privada. Cabe notar a diferença, por exemplo, para um pagamento recebido como um depósito bancário nos EUA, que conta com a proteção de um sistema de garantia e a segurança da conversão à vista e ao par na moeda estatal. Queira-se ou não, o instrumento se desprende do risco soberano, logo, não é seu substituto perfeito.

A segunda questão, a da integridade, foi apontada com propriedade pela economista Hélène Rey. Haverá dezenas, possivelmente centenas, de stablecoins disponíveis no espaço doméstico e internacional. Assim, para além da questão do seu lastro, com as ressalvas já apontadas acima, um aspecto central para definir a sua segurança será a integridade do sistema eletrônico (blockchain) do emissor. Qual o seu grau de inviolabilidade ou capacidade de resistir a ataques hackers? Não é possível garantir a priori esta integridade, mormente com um número elevado de emissores privados. Isto, somado à garantia incompleta de liquidez, define um grau de confiança menor do instrumento vis à vis a moeda convencional.

No que tange à concorrência, as stablecoins emitidas nos EUA se defrontarão no âmbito internacional com pelo menos dois instrumentos digitais concorrentes, além das operações bancárias convencionais: as stablecoins emitidas nos países de moeda conversível, nelas lastreadas, e as moedas digitais dos bancos centrais. No caso das primeiras, é possível conjecturar sobre as eventuais vantagens das stablecoins lastreadas em dólar vis à vis as demais, mas sem uma conclusão definitiva. Isto porque a natureza privada do instrumento poderá dar menos peso ao risco soberano. 

Quanto às moedas digitais dos bancos centrais, elas já circulam atualmente, ainda que de forma restrita, em âmbitos regionais, como por exemplo a moeda digital chinesa. Os acordos para ampliar seu uso têm sido desenvolvido no âmbito de instituições multilaterais como o Bank of International Settlement (BIS). Os fatores geopolíticos e as questões de segurança são os elementos essenciais da escolha dessas moedas públicas, e embora as desvantagens de sua utilização vis-à-vis o dólar persistam no formato convencional, elas se reduzem nas versões digitais.

No decorrer da disputa entre as moedas privadas e públicas, no âmbito internacional, a possibilidade de ocorrência de problemas de liquidez e integridade desfavorece as stablecoins. Vale dizer, é provável que os soldados digitais de Trump se revelem muito mais indisciplinados e sem apoio da retaguarda do que seus concorrentes digitais com garantia soberana podendo contribuir, em um evento extremo como uma corrida de liquidez, para reduzir ainda mais a centralidade do dólar.

Repost

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *