O influenciador digital Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, conseguiu o feito de acelerar a tramitação do Projeto de Lei 2628/22, que trata da proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Aprovada pelo Senado em dezembro de 2024, a proposta dormitava nas gavetas da Câmara até que uma denúncia feita pelo youtuber viralizou nas redes sociais. Com 47 milhões de visualizações em uma semana, o vídeo de 50 minutos expôs a lógica perversa dos algoritmos que impulsionam conteúdos com menores erotizados, para saciar o apetite de pedófilos e predadores sexuais. Diante da intensa repercussão, os deputados aprovaram o projeto em regime de urgência na quarta-feira 20. Votação simbólica, com manifestação de voto contrário apenas do partido Novo e do deputado Kim Kataguiri, do União Brasil. Por ter sofrido modificações em sua redação final, o texto volta ao Senado, onde deve ser referendado com celeridade. Lula já sinalizou que pretende sancionar o projeto, além de enviar outro mais amplo ao Congresso, para regulamentar a atuação das big techs no País.
“Casos como o que o youtuber Felca denunciou revelam uma realidade preocupante e gravíssima: crianças e adolescentes estão sendo expostos a conteúdos e situações que colocam em risco sua segurança e seu desenvolvimento nas redes sociais. Mais do que necessário, aprovar esse projeto é fundamental para avançarmos na proteção dos jovens nesses ambientes”, afirma o senador Alessandro Vieira (MDB), autor do “ECA Digital”, como a iniciativa foi batizada. Com o objetivo de tornar a internet um lugar mais seguro para os menores, o texto estabelece regras objetivas e amplia as possibilidades de responsabilização – não apenas de pais, responsáveis legais e produtores de conteúdo, mas também das plataformas que hospedam, impulsionam e monetizam esse tipo de material.
A despeito do clamor social pela aprovação do projeto, parlamentares do PL, partido de Jair Bolsonaro, tentaram obstruir a votação, alegando uma suposta ameaça à liberdade de expressão. “Não podemos esperar que novos casos de exposição e abuso ocorram para agir. Cada dia sem essa lei em vigor é um dia a mais de vulnerabilidade para milhões de crianças brasileiras”, rebateu o senador Alessandro Vieira. “A ausência de responsabilização e regulação contribui para a manutenção da impunidade, uma marca infeliz que o País carrega quando o assunto são as violações de direitos humanos de grupos historicamente vulnerabilizados”, acrescentou a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, na tribuna da Câmara.
O “ECA Digital”, como a iniciativa foi batizada, prevê a responsabilização de pais, produtores de conteúdo e das próprias big techs
A deputada Maria do Rosário, PT, criticou a postura dos opositores da iniciativa: “Estão trocando a responsabilidade de proteger a infância brasileira pela liberdade de usar as redes sociais para promover a conduta de ódio do bolsonarismo”. Para ela, a extrema-direita enfrenta um dilema moral. “A que senhor eles vão servir? Vão defender a proteção da infância e das famílias ou servirão aos interesses da família Bolsonaro?” A resistência só foi vencida após o relator do projeto, Jadyel Alencar, do Republicanos, substituir a criação de uma autoridade nacional para aplicar as sanções, apontada por bolsonaristas como uma tentativa de impor vigilância estatal massiva nas redes sociais, por uma “autoridade administrativa autônoma”, a ser criada por lei e que deverá observar as normas previstas pelas agências reguladoras. Além disso, as notificações sobre conteúdo impróprio só poderão ser feitas pelas vítimas, pelos seus responsáveis legais ou pelo Ministério Público, e não mais por qualquer usuário, como previa a redação original do projeto.
Na avaliação do deputado Carlos Zarattini, do PT, o ECA Digital representa um avanço, por ser a primeira iniciativa que conseguiu atribuir critérios claros às plataformas. “Se for para responsabilizar apenas as famílias, não resolve absolutamente nada. Cabe às big techs controlar o que circula em suas plataformas.”
Na prática, a nova lei torna a internet mais segura ao estabelecer que cabe às plataformas digitais promover “o melhor o interesse das crianças”. Isso inclui garantir um alto nível de privacidade e proteção de dados. O texto cria mecanismos de controle facilitado para pais e tutores, estabelece responsabilidades e impõe punições e multas – tanto às empresas quanto aos familiares – quando as obrigações não forem cumpridas.
Fim de festa. Acusado de explorar menores em seu reality show, Hytalo Santos foi preso. O projeto também visa proteger os jovens do cyberbullying – Imagem: iStockphoto e Redes Sociais
As plataformas deverão cumprir uma série de exigências. Entre elas, prevenir e mitigar a exposição de crianças e adolescentes a conteúdos nocivos, como exploração ou abuso sexual, violência, bullying, assédio, padrões de uso viciantes, transtornos de saúde mental e publicidade predatória. Também será proibido coletar, usar ou compartilhar dados pessoais de menores de forma que viole sua privacidade.
As empresas terão ainda de impedir o acesso e a criação de contas por crianças e adolescentes em sites com conteúdo pornográfico; disponibilizar configurações acessíveis para o controle parental; proibir técnicas de perfilamento para publicidade direcionada a menores; vincular contas de crianças em redes sociais às de seus responsáveis legais; e comunicar às autoridades competentes qualquer conteúdo relacionado à exploração sexual infantil detectado, além de removê-lo imediatamente após notificação.
Além disso, plataformas com mais de 1 milhão de usuários deverão elaborar relatórios periódicos sobre denúncias e moderação de conteúdo. Em caso de descumprimento das obrigações previstas na nova lei, estarão sujeitas a advertência e multa de até 10% do faturamento ou 50 milhões de reais. Os valores arrecadados serão destinados ao Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente.
Os algoritmos facilitam a busca de pedófilos por vídeos de crianças sexualizadas, denunciou Felca
Caberá aos pais e responsáveis supervisionar e controlar o conteúdo acessado e o tempo de tela, utilizar ferramentas de controle parental, evitar a exposição precoce de crianças a celulares e redes sociais (recomenda-se o primeiro celular a partir dos 14 anos e o acesso às redes sociais a partir dos 16), proteger os filhos da sexualização precoce e das redes de pedofilia, promover a educação midiática, não se omitir diante de situações de risco, comunicar às autoridades competentes, como o Disque 100, qualquer denúncia de violação de direitos, e reconhecer que o direito de imagem pertence à criança, não aos adultos que a expõem.
Felca desnudou uma rede perversa à qual milhares de crianças e adolescentes estão submetidos e denunciou produtores de conteúdo que lucram com a exploração de menores. É o caso de Hytalo Santos, que, antes da denúncia, mantinha uma conta no Instagram com mais de 17 milhões de seguidores, onde compartilhava uma espécie de reality show protagonizado exclusivamente por menores. A conta foi suspensa e ele e o marido, Israel Nata Vicente, foram presos. Desde 2024, ambos estavam sob investigação do Ministério Público da Paraíba e do Ministério Público do Trabalho por suspeita de exploração e exposição de crianças e adolescentes, trabalho infantil artístico irregular e tráfico humano. Também são acusados de oferecer presentes às famílias, como celulares e dinheiro, para obter a guarda de adolescentes entre 16 e 18 anos por meio de processos de emancipação.
De forma didática, Felca demonstrou como esse tipo de conteúdo é impulsionado pelos algoritmos quando os usuários demonstram interesse. Em muitos casos, são pedófilos que utilizam códigos próprios para trocar informações sem despertar suspeitas. Comentários como link in bio ou “troca” costumam indicar que o autor mantém uma conta ou canal no Telegram, onde disponibiliza material criminoso com crianças sexualizadas. Espantosamente, em alguns casos, os próprios pais são os produtores dos vídeos e imagens – e não hesitam em atender aos pedidos desses criminosos para aumentar o engajamento. Pela lógica de monetização das plataformas, quanto maior a audiência, maior o retorno financeiro.
Autor. “Não podemos esperar novos abusos para agir”, diz Alessandro Vieira – Imagem: Waldemir Barreto/Agência Senado
Professora de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, Denise Auad destaca que os defensores dos direitos de crianças e adolescentes vêm alertando há anos sobre os riscos da internet. No entanto, os deputados só se mobilizaram após a repercussão da denúncia feita por um youtuber. “Isso demonstra a fragilidade da forma como esses temas são tratados na esfera pública, e como nós, enquanto sociedade, estamos expostos a essa lógica do influencer”, lamenta. Para a especialista, a nova lei representa um avanço, mas ainda exige “um esforço conjunto, nacional e internacional, para mudar os parâmetros tecnológicos e evitar brechas nesse sistema de proteção”.
A psicóloga Ana Beatriz Chamati, especialista em infância, adolescência e parentalidade – que aparece no vídeo de Felca – explicou a CartaCapital os impactos da exposição excessiva sobre o desenvolvimento de crianças e adolescentes. “Sem controle dos pais ou responsáveis, a criança será muito influenciada na formação da própria identidade e na construção de valores. A curiosidade é um guia para a aprendizagem e a descoberta do novo. A hiperexposição mata essa curiosidade.” Por mais inocentes que possam parecer os vídeos com crianças dançando, eles podem dificultar a identificação de abusos psicológicos, físicos ou sexuais. “Infelizmente, a sociedade normalizou esse tipo de exploração da infância. Muitas vezes, o adulto de confiança é quem abusa, e a criança fica confusa, incapaz de reconhecer o abuso.”
“Ninguém larga o filho sozinho num local ermo à noite, num lugar perigoso. Então, por que algumas pessoas fazem isso na internet?”, questiona o advogado Ariel de Castro Alves, ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. “Esse tipo de exposição online pode ser considerado abandono de incapaz, uma vez que as crianças não estão preparadas para se proteger dos perigos do mundo virtual.” Na visão do especialista, a lei acerta ao cobrar dos pais um comportamento mais responsável. “Às vezes, postar uma foto da criança de fralda ou em trajes de banho pode parecer inocente, por ser uma cena cotidiana, mas não é assim que os pedófilos pensam.” •
Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital, em 27 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Efeito Felca’