A ofensiva antigênero liderada pela ex-ministra Damares Alves foi tão avassaladora que, mesmo três anos após o fim do governo Bolsonaro, seus efeitos ainda se fazem presentes em programas e políticas públicas voltados à população LGBTQIA+ e à proteção da infância e da família. Esta é a conclusão de uma pesquisa inédita realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com o Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês).
Intitulado Ruinologia: Uma Cartografia da Política Antigênero no Governo Bolsonaro (2019–2022), o estudo revela o desmonte de décadas de avanços em prol da igualdade de gênero. Embora foque na análise de atos normativos, programas e execução orçamentária do então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos sob o comando de Damares, os autores – antropólogos, sociólogos e especialistas em psicologia social – alertam que muitos retrocessos persistem, mesmo após a mudança de governo e os esforços da equipe de Lula para retomar políticas de inclusão.
“Essa ofensiva foi tão eficaz que ‘gênero’ se tornou uma palavra maldita, praticamente banida dos documentos oficiais do governo”, observa Marco Aurélio Máximo Prado, professor do programa de pós-graduação em Psicologia da UFMG e coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da universidade. “Parece que a gestão Lula não tem força política para implantar novas medidas diante de um cenário grave de violações e violências contra a população LGBT+. Falta determinação para enfrentar o tema em um ambiente marcado por fortes resistências.”
Prado observa que, até hoje, o Ministério da Educação não implementou uma política de gênero e sexualidade nas escolas públicas – reflexo do constante patrulhamento ideológico promovido por movimentos conservadores, como o Escola Sem Partido, e das fake news disseminadas pela extrema-direita nas redes sociais, a exemplo do fantasioso kit gay que tumultuou o debate eleitoral de 2018. O professor também menciona mudanças no Disque 100 – principal plataforma federal para o recebimento de denúncias de violações de direitos humanos – que ainda não foram totalmente revertidas pelo atual governo. Entre elas destaca-se a retirada do marcador “orientação sexual/identidade de gênero” no campo usado para classificar a motivação das situações denunciadas, o que compromete o acompanhamento histórico confiável dos casos motivados por preconceito.
“Sem esses indicadores, não é possível dimensionar com precisão a gravidade do problema, nem formular políticas públicas eficazes para combatê-lo”, alerta o professor. Sonia Corrêa, diretora do SPW e também coordenadora do estudo, observa que o termo utilizado no Disque 100 ainda é “sexo biológico”. “Assim sendo, ‘identidade de gênero’ como motivação para violência e violações de direitos de pessoa trans continua abolida, da mesma forma que as categorias consagradas homofobia e transfobia. É o que se pode chamar de herança maldita.”
Os pesquisadores reconhecem que não é tarefa simples livrar-se desse espólio obscurantista. O governo Bolsonaro deixou um campo minado, com armadilhas espalhadas por todos os lados. Embora tenha sido mantida, a Diretoria de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais foi descaracterizada e renomeada em 2021. Já o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT teve sua composição drasticamente reduzida – e a própria referência à comunidade foi removida. Segundo o professor João Gabriel Maracci, doutor em Psicologia pela UFMG e um dos autores do estudo, esses processos não extinguiram formalmente os órgãos, mas reduziram drasticamente sua eficácia, mantendo-os apenas como vitrine para sustentar a narrativa de que “tudo seguia bem”.
Especialistas da UFMG detalham retrocessos de 2019 a 2022 e o legado que perdura até hoje
Desde o início de sua gestão, Damares deixou claro que sua pasta priorizaria a “proteção”, e não a “promoção” de direitos dessa população. Para Maracci, essa postura restringiu a atuação do Estado ao mero amparo contra a violência, sem reconhecer os LGBTs como sujeitos políticos plenos. Prado acrescenta que a proteção de grupos vulneráveis é importante, mas insuficiente para enfrentar realidades como a escalada de casos de feminicídio no Brasil, que crescem desde 2020, na contramão da tendência de redução das mortes violentas em geral. “Não se combate esse tipo de violência apenas com medidas protetivas ou ações repressivas. É preciso criar projetos robustos de promoção dos direitos, com base na educação, na cultura e na mudança de comportamentos institucionais e públicos, construídos de forma ampla, consistente e de longo alcance.”
Ambos os especialistas interpretam o conjunto de medidas da gestão Bolsonaro não apenas como uma estratégia para atrair o eleitorado reacionário, mas como parte de um projeto ideológico mais profundo: a criação de uma nova ordem no campo dos direitos humanos, baseada no ultraconservadorismo e no neoliberalismo radical. O estudo também observa que a ofensiva contra as políticas de gênero e diversidade não se restringiu à esfera administrativa. Houve uma campanha intensa para desacreditar a pauta, instigando o pânico moral. As consequências, avalia Prado, são graves e duradouras – e a permanência de parte dessas estruturas no governo Lula evidencia a dificuldade de reverter o cenário.
Procurado, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania afirma que, desde o início do atual governo, tem atuado para reverter o desmonte promovido pela gestão anterior e fazer o “reenquadramento” das políticas herdadas. Sobre o Disque 100, diz que o termo “orientação sexual” foi retirado do campo motivação por “redundância”, mas permanece na categoria de violação. A nota reconhece que a reconstrução das políticas enfrenta “obstáculos significativos”, como a resistência de um Congresso majoritariamente conservador. O MDHC também informa estar em processo licitatório para reestruturar o formulário de denúncias, com atualização de termos e categorias, e finaliza edital para contratar consultoria especializada que revisará o Manual de Taxonomia, visando registros mais precisos de violações contra a população LGBTQIA+.
Já o Ministério da Educação afirma manter compromisso com “uma educação pública de qualidade, pautada nos princípios da inclusão, do respeito às diversidades e da promoção da equidade, com ações pautadas na Constituição Federal”, e acrescenta que as redes de ensino têm autonomia para desenvolver ações e projetos relacionados ao enfrentamento de violências e preconceitos. Destaca ainda um investimento de 7,5 milhões de reais em 2024 para promover a Educação em Direitos Humanos.
O relatório completo da pesquisa da UFMG e da SPW está disponível em https://sxpolitics.org/ptbr/. •
Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital, em 27 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Herança maldita’