A investigação aberta sobre o Pix e a imposição de tarifas ao Brasil pelo governo norte-americano são duas medidas com um tema em comum: pagamentos. A primeira questiona o papel das políticas e da plataforma pública de pagamentos no âmbito doméstico, sob a alegação de serem práticas comerciais injustas que prejudicam as empresas norte-americanas. Já a segunda, entre outras razões apontadas, é uma retaliação à atuação do Brasil no Brics, que tem se expandido e pretende criar soluções alternativas de pagamentos transfronteiriços em moedas nacionais, além de estudar a criação de uma moeda comum aos países do bloco. A iniciativa, em parte, é uma reação ao uso pelos Estados Unidos de redes globais de pagamento para impor sanções diplomáticas. Assim, chegamos ao ponto em que, no atual contexto, sistemas de pagamento passaram de infraestruturas invisíveis a artefatos estratégicos na geopolítica global.
A concentração da oferta de serviços de pagamento de varejo em empresas norte-americanas há um tempo vem sendo enfrentada com novas regulamentações, com a entrada de novos participantes e com o desenvolvimento de infraestruturas digitais públicas. No Brasil, a regulamentação de pagamentos de 2013 quebrou o oligopólio Visa-Mastercard e, em 2020, o Pix reduziu a zero as taxas cobradas de pessoas físicas. China, Rússia e Índia têm estatais para cartões de pagamento (UnionPay, Mir e RuPay) e sistemas instantâneos similares ao Pix (IBPS, FPS e UPI).
No cenário internacional, as transferências de grandes valores ocorrem majoritariamente por meio de bancos correspondentes conectados em redes privadas, que processam as instruções de pagamento com custos e prazos médios elevados. Grupos e organismos internacionais, como o G20 e o BIS (Banco Internacional de Pagamentos), possuem uma agenda para melhorar a eficiência dos pagamentos transfronteiriços. Alguns dos projetos mais inovadores e de impacto foram concebidos no Innovation Hub do BIS e são desenvolvidos com a participação de diversos bancos centrais. Fora dos laboratórios de inovação financeira, no mundo real, um plano mais ambicioso está em andamento, agora no âmbito do Brics, liderado principalmente por Rússia, Brasil e China.
O bloco está discutindo o desenvolvimento de soluções de pagamento alternativas à Swift, que hoje processa ao menos metade das instruções e do valor das transações globais. As discussões incluem também a possibilidade de, no futuro, ser adotada uma moeda comum para transações intrabloco. A cada reunião de cúpula, os membros reforçam seu apoio à realização de estudos técnicos e à continuidade dos projetos. China, Rússia e Índia já têm sistemas próprios similares à Swift (respectivamente CIPS, SPFS e SFMS), no entanto, são limitados aos seus parceiros comerciais e a pagamentos em suas moedas.
A Swift é uma rede de comunicação com mensagens padronizadas, que interliga bancos correspondentes de todo o mundo, por meio dos quais os pagamentos são efetivamente realizados. Além do alto custo e do longo tempo de finalização das instruções, a Swift deixou de ser um sistema confiável, dada sua instrumentalização pelos Estados Unidos. A exclusão dos bancos russos e iranianos disparou um alerta para os demais países de que um sistema de pagamento poderia ser usado como arma diplomática. Mais recentemente, com as ameaças de retaliação aos membros do Brics por diferentes meios, a percepção de risco certamente se acentuou. Sistemas de pagamento tornaram-se artefatos de guerra e uma questão de segurança nacional.
Parte da solução está em aproveitar infraestruturas existentes. Para pagamentos de pessoas físicas ou empresas, pelo menos 70 outros países além do Brasil possuem um serviço similar ao Pix em operação — sob a gestão do setor público, do setor privado ou de consórcios ou parcerias formadas por ambos. Esse número pode chegar a 100, dependendo do critério e fontes analisadas. São componentes de um ecossistema que, se integrados em um arranjo multilateral, podem formar uma rede internacional de pagamentos alternativa e complementar às redes atuais.
Esta ideia está colocada no projeto Brics Pay, ainda em desenvolvimento, apresentado na cúpula do bloco, realizada na Rússia em novembro de 2024. O Brics Pay será uma solução digital para pagamentos internacionais, integrando os sistemas locais por meio de uma rede de mensageria descentralizada. Será possível a um consumidor em um país estrangeiro pagar em sua moeda nacional enquanto o vendedor recebe em sua moeda local. Já existe a possibilidade de realizar pagamentos locais usando um sistema de outro país, viabilizados por uma conexão bilateral ou por fintechs privadas, mas não por meio de uma integração multilateral. O Projeto Nexus do Innovation Hub do BIS, em estágio avançado de desenvolvimento, também é uma solução de integração de sistemas de pagamento instantâneo — no entanto, além de outras diferenças, é um hub e não uma rede descentralizada.
Em outra frente de ação está o esforço de criação de moedas digitais soberanas. O anúncio pelo Facebook, em junho de 2019, informando que criaria a Libra, uma stablecoin lastreada em uma cesta de moedas oficiais, alertou as autoridades de todo o mundo para a ameaça das big techs à soberania monetária em suas próprias jurisdições. Isso motivou uma reação inicial que, hoje, evoluiu para mais de 130 bancos centrais trabalhando em diferentes fases de desenvolvimento de uma Moeda Digital de Banco Central, ou CBDC (Central Bank Digital Currency).
Como as criptomoedas, CBDCs são representações digitais criptografadas, baseadas na tecnologia de registro distribuído (DLT). No entanto, são moedas oficiais emitidas e controladas de forma centralizada por uma autoridade monetária. A moeda digital chinesa e-CNY, uma CBDC de varejo, é a que mais se destaca pela escala, pelo estágio avançado da experiência-piloto e por ser parte de um projeto de internacionalização. O Brasil, igualmente, é uma referência com o desenvolvimento do Drex, que terá o real na forma de uma CBDC de atacado, utilizada somente para pagamentos interbancários.
As CBDCs são também componentes para construção de uma alternativa à Swift. Ainda na cúpula de novembro de 2024, foi anunciado o projeto Brics Bridge, um sistema de liquidação com tecnologia DLT para transações interbancárias de atacado. O Brics Bridge será uma nova plataforma multiCBDC que, conectada aos sistemas dos bancos centrais, possibilitará a realização de pagamentos e a liquidação de operações de câmbio com as moedas digitais de cada país, sem utilizar o dólar ou bancos correspondentes como intermediários.
A plataforma, com um ambiente próprio em que as CBDCs serão emitidas e canceladas pelos próprios bancos centrais, diferencia-se de uma rede de comunicação descentralizada, como o Brics Pay, ou um hub, como a Swift, que interligam sistemas ou plataformas. O Brics Bridge é inspirado em uma iniciativa original do Innovation Hub do BIS chamada mBridge, em parceria com a China e outros bancos centrais da Ásia e Oriente Médio. O projeto atingiu o estágio de produto mínimo viável, mas antes de avançar para o estágio operacional o BIS deixou o projeto, segundo informações não oficiais, devido a uma imposição dos Estados Unidos, que perceberam tardiamente que a ideia poderia servir para contornar sanções diplomáticas.
O modelo mais provável para a moeda comum do Brics (um projeto em discussão, mas de concretização ainda distante) é o de uma unidade de conta auxiliar para compensação de operações realizadas no âmbito desta nova plataforma. As posições credoras ou devedoras líquidas entre os participantes seriam calculadas em Brics Units e posteriormente liquidadas. Uma unidade de conta não substituiria as moedas nacionais nem exigiria união monetária. Seu valor seria definido com base em uma cesta ponderada das moedas dos países do bloco (real, rublo, rúpia, renminbi e rand), podendo incorporar commodities estratégicas. Para realizar a compensação de pagamentos está prevista a criação da Brics Clear, que, integrada a uma depositária central, poderia liquidar também operações com títulos públicos e privados
Apesar de divergências, da ausência de cronograma e de diversos outros desafios, Brics Pay, Bridge, Clear e Unit formam o plano para uma nova infraestrutura estratégica na geopolítica global, que visa promover o uso de moedas nacionais no comércio exterior, fortalecer a soberania monetária dos membros do bloco e trazer mais equilíbrio à governança financeira mundial. Nesses projetos, sistemas como o Pix, e moedas soberanas digitais, criadas por projetos como o Drex, são blocos fundamentais para construção dessa nova arquitetura. Apesar de a desdolarização ser um dos objetivos com a promoção de moedas nacionais, não há a pretensão de disputar o papel de moeda-chave e fragmentar o sistema monetário. O objetivo é dispor de alternativas, interoperáveis e integradas às infraestruturas atuais, e mitigar o risco de restrições de acesso injustificadas a serviços de pagamento essenciais ao comércio e às finanças internacionais.
Mas sem disposição para ceder, as preocupações do governo norte-americano com o Brics aumentaram em razão das declarações dos presidentes do Brasil e da Rússia em apoio às iniciativas de construção de um sistema de pagamento alternativo e a estudos iniciais para a adoção — por ora descartada — de uma moeda comum, bem como em função da expansão do bloco, que passou a ter onze membros e dez países parceiros. Trump chegou a afirmar que perder a hegemonia do dólar seria como perder a Segunda Guerra Mundial.
Trump começou com suas ameaças aos países do Brics logo após sua vitória eleitoral. Em dezembro de 2024, após a cúpula realizada em novembro na Rússia e duas semanas após ganhar as eleições, ameaçou impor tarifas de 100% sobre os membros do bloco, caso criassem uma moeda comum. Em janeiro de 2025, reiterou a ameaça de tarifas de 100%. Em 6 de julho, em meio à cúpula dos Brics, no Rio de Janeiro, ameaçou impor tarifas adicionais de 10% para os países que se alinhassem às “políticas antiamericanas” do grupo. Em 9 de julho, foram anunciadas as tarifas de 50% sobre os produtos brasileiros. Em 15 de julho, foi aberta a investigação sobre o Pix.
Em seguida, em 18 de julho, o presidente dos Estados Unidos sancionou a regulamentação das “stablecoins americanas”, lastreadas em dólar ou em títulos do Tesouro norte-americano, avançando em sua estratégia peculiar de fortalecimento do dólar. Em vez da criação de uma CBDC, um dólar digital, que foi proibida por ele logo no início de seu mandato, os Estados Unidos promoverão a emissão de moedas digitais privadas. O governo teria o poder de bloquear carteiras digitais e aplicar sanções.
A ideia é que essas stablecoins possibilitem pagamentos transfronteiriços mais rápidos e de baixo custo e, assim, reduzam o potencial de arranjos alternativos de pagamento, como os planejados pelo Brics, e de moedas digitais de bancos centrais, como a e-CNY chinesa. A estratégia também pode levar à dolarização de economias nacionais, deslocando moedas mais fracas dentro de suas próprias jurisdições.
É exatamente o oposto do que bancos centrais e organismos multilaterais têm buscado com a criação de moedas digitais soberanas e o desenvolvimento de novos modelos para infraestruturas mais seguras, ágeis e eficientes em transações financeiras internacionais. Em breve, veremos se isso realmente vai reforçar ou, pelo contrário, vai corroer a soberania monetária dos Estados Unidos.