No início de agosto, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) lançou uma nova forma de oferta de Ensino Médio na rede estadual: uma modalidade ‘flexível’ em que os alunos só precisam frequentar a escola uma vez ao mês, podendo se matricular somente nos componentes curriculares em que tenham sido reprovados. O modelo segue o dos atuais Centros Estaduais de Educação de Jovens e Adultos (CEEJAs), que já oferecem essa modalidade “semipresencial” e ultraprecarizada de Educação para Pessoas Jovens e Adultas (EJA) em 39 unidades espalhadas pelo estado de São Paulo.
Até aí, tudo dentro do esperado para uma rede de ensino habituada a precarizar a oferta educativa para aqueles que tiveram oportunidades educacionais negadas ao longo da vida: fechamentos sistemáticos de classes presenciais, nucleação escolar, adoção indiscriminada de EaD e aceleração da formação sem qualquer preocupação com qualidade.
A verdadeira novidade é que o modelo será implantado como “projeto-piloto” em 20 escolas regulares, localizadas precisamente nas regiões não atendidas pelos CEEJAs. Trata-se, portanto, de um ensaio de descentralização da EJA semipresencial – cujas matrículas, como mostrou uma Nota Técnica da Rede Escola Pública e Universidade (REPU) de julho de 2024, também vêm caindo na rede estadual.
No limite, o novo modelo oferece a estudantes com 18 anos ou mais, hoje matriculados no Ensino Médio regular, a possibilidade de se transferirem diretamente para a EJA e frequentarem as aulas somente uma vez por mês, sem a necessidade de mudar de escola ou de se deslocar a outros distritos.
A possibilidade de exploração eleitoreira dos rankings educacionais é o que impele prefeitos, governadores e secretários a darem “um jeitinho” de acelerar a subida do Ideb
A real “oportunidade”, contudo, não é para os estudantes – que certamente terão uma formação pior, caso optem pelo modelo semipresencial –, mas para a própria Seduc-SP, que poderá reduzir o custo da escolarização da população mais vulnerável e, ainda por cima, retirá-la do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), exame nacional que não inclui estudantes da EJA. Eis o mirífico intento do secretário estadual da educação de São Paulo, o empresário e financista Renato Feder: remover os estudantes do Ensino Médio com maior atraso na escolarização da avaliação nacional para aumentar alguns pontinhos.
O estado de São Paulo possui as menores taxas de distorção idade-série do país, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio. Para a última etapa da educação básica, os dados disponibilizados pelo Inep para 2024 indicaram que 10,7% dos estudantes matriculados no ensino médio estadual paulista estavam acima da idade adequada para a série. Para efeitos de comparação, no Rio Grande do Norte, estado com a maior distorção idade-série do país no Ensino Médio, 40,1% dos estudantes estavam acima da idade adequada para a série em 2024. Apesar da situação mais favorável da rede paulista, o último Censo Escolar do Inep apontou a existência de 122.726 estudantes com 18 anos ou mais matriculados no Ensino Médio regular. Destes, 52.486 (42,8%) estudavam em escolas localizadas nas 20 Diretorias de Ensino que abrigarão o precaríssimo modelo flexível recém-lançado pela Seduc-SP, com matrículas abertas para início imediato.
A Nota Técnica da REPU apontou que, em 2023, a EJA presencial e semipresencial (CEEJAs) somaram, cada uma delas, cerca de 50 mil matrículas em todo o estado de São Paulo – um número ínfimo diante da demanda potencial de 11,75 milhões de pessoas acima de 24 anos com escolarização inconclusa no estado mais rico do país. Sem interesse em garantir o direito à educação dessa população, o “projeto-piloto” de formação simplificada da Seduc-SP tenciona, na verdade, transferir dezenas de milhares de matrículas de estudantes com mais de 18 anos do Ensino Médio regular para a EJA. E, com isso, reduzir ainda mais a distorção idade-série e melhorar um pouco o desempenho das escolas estaduais no Saeb. A correlação é conhecida: quanto menor é a distorção idade-série, melhor é o desempenho de uma turma nas avaliações externas.
Não faz muito tempo, Rossieli Soares da Silva, antecessor de Feder na Seduc-SP operou um “milagre” como secretário de educação do Pará: elevou o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do Ensino Médio paraense da 26ª para a 6ª posição no país, depois de turbinar as taxas de progressão escolar e transferir dezenas de milhares de estudantes do Ensino Médio regular para a EJA, retirando da população-alvo da avaliação oficial os estudantes com maior defasagem; incidentalmente, também os mais vulneráveis de qualquer rede de ensino.
Sem conseguir transferir os estudantes mais velhos para a EJA de forma compulsória, Feder propagandeia que 122,7 mil deles poderão ser liberados das aulas e obter o diploma, esperando que aceitem de bom grado uma formação escolar aligeirada e de qualidade inferior. O objetivo do secretário é que isso contribua para alavancar o Ideb do Ensino Médio no estado.
Melhor do que asfalto
É a cada dois anos, sempre às vésperas das eleições, que o Ministério da Educação divulga os resultados do Ideb. No curto prazo, os famigerados e estatisticamente problemáticos rankings do Ideb por escolas, por municípios e por estados nutrem campanhas eleitorais e o oportunismo dos mercadores de ilusões de fundações e institutos empresariais. No longo, constroem carreiras e perpetuam dinastias políticas em poderes locais e nem tão locais. Vide o caso do Ceará, a meca da aprendizagem no Brasil que fez ministro da educação seu ex-governador.
A divulgação do último Ideb – o de 2023 – gerou copiosas reportagens em que ‘especialistas’ em educação queridinhos do mercado recitaram os evangelhos das ‘boas práticas’ e da eficácia gestionária, razões pelas quais tantos municípios pobres conseguiriam atingir os sumos altares do templo da aprendizagem e converter-se em referências educacionais para o País.
O Ideb resulta da multiplicação de dois números: o “Indicador de Rendimento” (P), calculado a partir das taxas de aprovação (quantos estudantes passaram de ano), e a Nota Média Padronizada (N) obtida nas avaliações de Matemática e Língua Portuguesa do Saeb. A prova é censitária para estudantes de escolas públicas do 5º e do 9º ano do Ensino Fundamental e do 3º ano do Ensino Médio; isto é, obrigatória para todo/a estudante que integre a população-alvo.
Estudantes de escolas com menos de dez matrículas na etapa, de turmas multisseriadas, da EJA e da Educação Especial estão excluídos/as da população-alvo do Saeb. O motivo da exclusão é estatístico, mas cria um mundo de possibilidades para milagreiros e santos do pau oco da administração pública e do setor privado que concentram as atenções nos rankings para encobrir desigualdades escolares severas nas redes de ensino, bem como as manobras deliberadamente voltadas a distorcer os indicadores.
Com alguma curiosidade – e um pouco de prática com planilhas eletrônicas – é possível identificar que alguns dos municípios líderes no Ideb dos Anos Finais do Ensino Fundamental em 2023 transferiram turmas inteiras entre escolas nos anos anteriores, mantendo determinados estudantes nas escolas-alvo dos exames e pulverizando o restante das matrículas em escolas com menos de dez alunos no 8º e 9º anos do Ensino Fundamental. Também há cidades que multiplicam laudos psicológicos para enquadrar estudantes sem deficiências no público-alvo da Educação Especial. Outras, bonificam, punem e pressionam educadores e estudantes pelos resultados. O “trabalho” é praticamente artesanal, pois nem tudo o que funciona no município A para inflar ou burlar as avaliações oficiais serve para o estado B.
Aumentar rapidamente o produto N x P do Ideb, este singelo número que varia de zero a dez, é o cálice sagrado do qual tantos secretários de educação, prefeitos e governadores desejam ardentemente se servir, em especial nos anos finais de seus mandatos. Toda pessoa na administração pública que seja honesta e tenha um mínimo senso de realidade sabe, porém, que não é fácil produzir aumentos consistentes em indicadores educacionais. Mais difícil ainda é tornar esses aumentos (que são tipicamente lentos) visíveis ao eleitorado. Implementar boas políticas educacionais e garantir a sua continuidade é operação que leva anos (décadas, até), dá trabalho e demanda muito dos cofres públicos.
Melhorar salários, carreiras e condições de trabalho de profissionais da educação, investir em uma boa formação docente, manter uma infraestrutura escolar digna do nome, garantir acesso e permanência na escola e realizar múltiplas ações intersetoriais (com assistência social, saúde, cultura, esporte, trabalho, defesa da infância e da adolescência etc.) são medidas com impactos eleitorais comparáveis aos das obras de saneamento básico enterradas sob calçadas, ruas e avenidas. Melhoram a qualidade da vida em sociedade, mas dificilmente rendem votos no curto prazo.
A possibilidade de exploração eleitoreira dos rankings educacionais é o que impele prefeitos, governadores e secretários a darem “um jeitinho” de acelerar a subida do Ideb em suas redes de ensino. A elevação rápida dos números funciona como uma obra de recapeamento asfáltico, só que a custo significativamente menor para o erário. É atrás disso que corre Renato Feder neste segundo semestre de 2025: expandir o capital político do chefe, o bolsonarista Tarcísio de Freitas, para as eleições do ano que vem.
“Sem pressão”
O estado de São Paulo piorou no ranking estadual do Ideb em 2023, tanto para o Ensino Fundamental quanto para o Médio. Um estudo recente assinado pelo Grupo Escola Pública e Democracia (Gepud) e pela REPU demonstrou a falta de correlação entre o uso obrigatório de plataformas digitais – principal política curricular adotada pela Seduc-SP – e os resultados das escolas estaduais no Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp).
A aproximação das provas do Saeb 2025, que serão aplicadas na rede estadual paulista entre 22 de novembro e 10 de dezembro, aprofundou em definitivo a pressão da Seduc-SP sobre as escolas e suas comunidades. Além do modelo “flexível” de Ensino Médio para os estudantes mais vulnerabilizados da rede, a Seduc-SP lançou a “Jornada 90 dias Saeb”, com um conjunto de ações para impulsionar o desempenho das escolas na prova nacional.
Segundo o documento orientador da “Jornada”, seu “principal objetivo é oferecer um roteiro claro de ações para que escolas e Diretorias de Ensino concentrem esforços na recomposição das aprendizagens, na mobilização dos estudantes e no engajamento das famílias”. Uma atuação “eficaz e focada” na elevação dos indicadores. Em outras palavras: treino, competição e pressão. Todas as ações da rede de ensino neste segundo semestre do ano estão concentradas no Saeb.
Juntamente com a Associação Parceiros da Educação, eterna apaniguada dos governos paulistas, a Seduc-SP criou um “Guia do Currículo Priorizado” para focalizar as aulas de Língua Portuguesa e Matemática do Ensino Fundamental e do Ensino Médio somente naquilo que será cobrado no Saeb. O princípio é autoevidente: escola pública, currículo mínimo.
Em uma visita ao perfil do Instagram da Seduc-SP, já é possível ver um vídeo em que estudantes de uma escola do Campo Limpo (São Paulo/SP) divulgam a preparação de sua escola para o “Brasileirão Saeb”, uma das ações mais insólitas da recém-iniciada “Jornada”. Ao final, a câmera aponta para a janela de uma sala de aula, de onde um grupo grita: “Estudem para o Saeb!”. Em seguida, entra o slogan do governo Tarcísio: “São Paulo são sonhos, São Paulo são entregas, São Paulo são oportunidades, São Paulo são obras, São Paulo são todos”. O texto que acompanha a postagem diz:
O Simulado do SAEB 2025 vem aí!
Nos dias 12 e 13 de agosto, os estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental e da 3ª série do Ensino Médio da rede estadual vão encarar um desafio importante. E é só um treino!
O simulado é a chance de testar conhecimentos, entender onde melhorar e seguir avançando. Sem pressão! É pra aprender com o processo e crescer juntos.
Vamos com tudo? (13 ago. 2025)
A julgar pelos comentários ao vídeo, é possível depreender que a Seduc-SP promoveu uma espécie de concurso, já que outros estudantes estranham que os vídeos que gravaram em suas escolas não foram postados. É claro que nenhum deles deve ter sido informado que faria propaganda política gratuita para o governo do estado. E que, apesar da ênfase no “Sem pressão!”, o verdadeiro objetivo do governo com a jornada dos 90 dias é o “Vamos com tudo!”. O “Brasileirão Saeb” é, nas palavras da Seduc-SP, uma estratégia de mobilização que transforma o desafio da avaliação em uma competição saudável, divertida e motivadora para estudantes, professores e toda a comunidade escolar. A ideia vem do futebol: assim como os clubes disputam a taça a cada temporada, nossas escolas têm, a cada dois anos, a chance de conquistar a taça educacional, elevando seus resultados e celebrando o esforço coletivo de todos os envolvidos.
Na prática, trata-se de uma competição entre turmas, que recebem pontos se: 1) realizarem (com acerto) as tarefas dos planos de aprendizagem de Língua Portuguesa e Matemática; 2) frequentarem as aulas; 3) comparecerem à prova do Saeb; 4) tiverem bom desempenho no último simulado preparatório ao Saeb.
A premiação virá na forma de um recurso descentralizado destinado aos grêmios estudantis (PDDE Grêmio) 50 reais por estudante para as escolas que atingirem o status “Ouro” (atingimento de ao menos 50% das metas) e 100 reais por estudante para aquelas que alcançarem o status “Diamante” (cumprimento de 100% das metas). Em uma live de 16 de maio, a Seduc-SP explicou o funcionamento da coisa, de onde vem “a grana” (Resolução Seduc-SP n. 65/2024).
Trechos da live de orientação do “Grêmio Estudantil Paulista” (16 mai. 2025).
Nesse clima saudável de simulado, um bom exercício de Matemática para os estudantes seria calcular quantas escolas da rede não receberão nenhum centavo para o fomento aos seus grêmios estudantis, pois é um tanto óbvio que 50 milhões de reais não teriam como ser distribuídos entre os mais de três milhões de estudantes da rede estadual em pequenos bônus de 50 e 100 reais.
Ou seja, o governo Tarcísio deixará ao menos dois terços dos grêmios estudantis à míngua, colocando uma política que deveria fortalecer a gestão democrática escolar – um princípio constitucional – a serviço de seus interesses políticos. Além disso, a definição de eixos específicos de atuação para os grêmios (esportes, tecnologia, convivência etc.) já mostra que o que a Seduc-SP espera dos estudantes é amabilidade e cortesia. Nada de organização política.
As ações de “motivação” da Jornada Saeb 90 dias não se encerram nos treinos e competições combinados com incentivos financeiros individuais aos estudantes. Envolvem também um dia de “descompressão e relaxamento” na véspera do exame, uma conversa em “tom motivacional e inspirador” com cada turma e um “mural de incentivos” com bilhetes de apoio escritos pelos alunos das turmas que não farão a prova nacional.
No deslinde dos 90 dias, imediatamente antes de iniciar a prova do Saeb 2025, cada estudante encontrará sobre a sua carteira duas cartas de incentivo, uma produzida pela escola (a Seduc-SP disponibilizará um formulário pronto para isso) e outra produzida pelas famílias. Caso os responsáveis não consigam fazê-lo, deverão indicar um “professor de referência” para escrever a carta.
Já não bastasse ter o seu trabalho vilipendiado por slides cheios de erros, plataformas digitais obrigatórias, empreendedorismo escolar e coachismo empresarial via lives, agora os docentes da rede estadual paulista também deverão produzir cartas de incentivo individualizadas para seus alunos. Afinal, o resultado das avaliações oficiais pode implicar bonificações ou punições aos educadores. Tudo sem pressão, claro.
Lá atrás, as avaliações externas foram criadas sob o nobre pretexto de acompanhar e corrigir os rumos das políticas educacionais. Hoje, convertidas em fábricas de “evidências” do sucesso de projetos educacionais experimentais e de curtíssimo prazo, só beneficiam políticos e vendedores de tranqueiras educacionais, alimentando o discurso economicista daqueles cujos filhos e netos passam longe das escolas públicas.
Muitas escolas estaduais em São Paulo possuem desempenhos abaixo da média nas avaliações externas estadual e nacional e, ao mesmo tempo, apresentam taxas de ingresso nas universidades públicas superiores às demais. A relação entre melhoria da qualidade da educação e elevação de indicadores, por óbvio, é mais complicada do que a cantilena individualista da Seduc-SP e dos seus parceiros faz parecer.
Organizar um campeonato boboca, entregar cartinhas motivacionais e oferecer dinheiro – além de transferir milhares de matrículas para a EJA semipresencial e de pressionar educadores e estudantes até o limite da exaustão – são as ações estratégicas do governo paulista para produzir o “milagre”. A luta por uma escola pública de qualidade, aquela que realmente faz diferença na vida das pessoas, passa, porém, bem longe disso.
Há poucos dias, em entrevista a um podcast direitista sobre investimentos, Renato Feder foi peremptório: “Não bateu a meta, tchau”, disse – referindo-se à possível perda dos cargos dos diretores escolares que não atingirem os números definidos por seu gabinete. Com efeito, o número de gestores que perderam seus cargos na rede estadual em razão do não atingimento de metas de uso de plataformas e na avaliação estadual já supera os 200. Sem pressão. Só trabalho “coletivo” para beneficiar Tarcísio nas eleições de 2026.
Contudo, se a lógica do secretário valer para ele próprio, o seu destino à frente da Seduc-SP estará nas mãos dos estudantes da rede estadual, atuais destinatários das pressões do governo Tarcísio. Afinal, a depender da forma como os alunos vierem a se “engajar” na jornada dos 90 dias e nas provas do Saeb, é o próprio Feder que deixará de cumprir as metas eleitoreiras do governador e poderia ter que dizer “tchau”.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.