Em um único dia, a diretora Helena* precisou lidar, de perto, com quatro casos de automutilação e ideação suicida entre estudantes de sua escola pública, na região metropolitana de São Paulo. “Isso se tornou ainda mais comum depois da pandemia”, conta.
Há, sim, um profissional designado pelo governo — mas que só aparece a cada quinze dias. “Temos uma linha de escuta e acolhimento, tentamos entender e orientar caso a caso. Mas sabemos que é insuficiente”, admite, resignada.
Essa é apenas uma das frentes de batalha da educadora que, há 28 anos, comanda o mesmo colégio. De segunda a sexta, ela gerencia, com o apoio de uma equipe exausta, um espaço que recebe 950 estudantes divididos nos turnos da manhã, tarde e noite, entre os ensinos Fundamental e Médio. Uma pequena cidade cuja prefeita presta contas a um gabinete que exige cada vez mais números e relatórios, mas oferece cada vez menos recursos humanos e materiais.
Nos últimos meses, Helena passou a enfrentar outro tipo de pressão: a ameaça direta de perder o cargo. A Secretaria Estadual de Educação, sob o comando de Renato Feder, implantou uma avaliação de desempenho que, no limite, pode remover diretores de suas funções. Desde então, ela vive sob o peso de um sistema que transforma décadas de experiência em notas de um boletim eletrônico.
“Fui chamada para uma reunião na diretoria de ensino e, lá, fui informada de que minha nota pedagógica — baseada no Saresp, o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo — era E, e nas plataformas, C”, relata. “Nunca me senti tão atacada, tão vilipendiada… Essas notas não refletem um terço do que enfrentamos diariamente.”
No início de 2023, a Seduc determinou que a avaliação dos diretores seria feita bimestralmente, com base em indicadores como frequência escolar, participação nas provas, uso das plataformas digitais e índice de vulnerabilidade da escola. Este ano, o rendimento no Saresp ou no Saeb, avaliação federal, passou a pesar ainda mais. Quem cai no “grau insatisfatório” pode ser removido de sua escola, rebaixado ao cargo inicial ou obrigado a fazer um curso de capacitação.
Diretores escolares que atingissem grau insatisfatório na avaliação bimestral podem ser removidos para outra escola ou sede da diretoria de ensino; voltar a atuar no cargo inicial na rede; ou serem submetidos um curso de capacitação.
Na prova do Saresp de 2023, a escola de Helena sequer conseguiu concluir o exame: uma pane na internet impediu que uma turma do sétimo ano participasse. A ausência de nota, no entanto, entrou no cálculo — e puxou para baixo o desempenho da escola. “Travamos uma luta diária para manter os meninos na escola. Muitos já estão no trabalho precário, como entregadores, e ficam à beira da evasão. É um trabalho de anos para que eles se encontrem”, desabafa. “Um único dia de prova não mede isso.”
A própria resolução que rege a avaliação (nº 04/2024) estabelece apenas quatro conceitos possíveis: insatisfatório, regular, satisfatório e excelente. “E” e “C” não existem nem no papel, aponta Helena. Ainda assim, a Seduc reconhece que, até maio deste ano, seis diretores efetivos já foram afastados.
‘Todo mundo está saturado das plataformas’
Entre as novas tarefas, Helena também precisa monitorar obsessivamente as metas de uso das 31 plataformas digitais impostas pelo governo. “A principal questão é que as plataformas são aleatórias, não conversam entre si e rompem com a luta pela interdisciplinaridade que travamos há anos”, diz. Na prática, os conteúdos pré-formatados limitam a liberdade de criação dos professores e transformam a aula num roteiro previsível: abrir slides, mandar os alunos responderem exercícios on-line, repetir. “Não há novidade. Está todo mundo saturado. E, ainda por cima, faltam equipamentos para dar conta disso.”
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário da Educação, Renato Feder. Foto: Flávio Florido/EducaçãoSP
A sobrecarga vem acompanhada de uma avalanche burocrática: até 25 de julho, a Seduc havia emitido 100 resoluções no ano. “Mal assimilamos uma mudança e já chega outra, geralmente sobre questões burocráticas. É preencher planilhas, prestar contas… O pedagógico, que deveria ser o essencial, vai ficando de lado.”
Um estudo recente da Rede Escola Pública e Universidade, a Repu, reforça essa impressão. A obrigatoriedade das plataformas educacionais, apontam os dados, não tem contribuído com a aprendizagem dos estudantes da rede estadual de São Paulo. Há escolas com bons resultados no Saresp e baixo uso das plataformas — e o inverso também. Se o efeito pedagógico duvidoso, o custo é certo: 471 milhões de reais em 2024.
A secretaria, por sua vez, sustenta que as plataformas fazem parte do processo de modernização da rede e oferecem recursos complementares a professores e alunos. Afirma ainda que a melhoria da aprendizagem é multifatorial e que seria “prematuro” estabelecer relação direta entre resultados e uso das ferramentas — apesar de já condicionar a vida funcional dos diretores a esses indicadores.
*Nome fictício para preservar a identidade da diretora, que teme represálias.