Reflexões de um crítico de vinhos – CartaCapital

Escrever sobre vinhos nas últimas décadas se transformou da mesma maneira que o jornalismo econômico ou o político, resultado da influência das redes sociais, do aumento dos preços de rótulos e dos efeitos das mudanças climáticas. É uma das reflexões que John Gilman, autor da resenha bimestral The View from The Cellar, uma das mais reputadas do mundo do vinho, faz em uma entrevista ao blog.

“Nada afetou mais profundamente o mundo do vinho — e na maioria dos casos negativamente — do que o aquecimento global nos últimos trinta anos”, diz Gilman, que nas décadas de 1980 e 1990 trabalhou como sommelier e vendedor de vinhos nos Estados Unidos e na Suíça. Depois, nos anos 2000, começou a escrever sobre sua paixão.

Para ele, a temperatura média mais alta beneficiou algumas áreas da Alemanha e da Champagne, com uvas mais maduras a cada ano, tornando a produção mais equilibrada, mas a maioria das outras regiões sofreu.

“Quando comecei no comércio de vinhos, no início dos anos 1980, podiam ser contadas duas ou talvez três grandes safras por década na Alemanha. Hoje, a Alemanha tem sete ou oito grandes safras a cada década. Mas, para cada região que se beneficiou do aquecimento acelerado do nosso planeta, provavelmente há três ou quatro que perderam dramaticamente com as mudanças climáticas. Eu não consigo nem imaginar tentar ser um produtor em regiões como sul do Rhône, na França, em alguns lugares da Califórnia, como Napa Valley, ou mesmo em Bordeaux nos dias de hoje. O clima mudou tão dramaticamente nesses lugares que os viticultores realmente têm de criar novas estratégias sobre como tentar vencer o calor do nosso planeta e continuar a fazer bons vinhos. Muitos não conseguiram fazer isso.”

Nesse caso, quando os extremos climáticos podem se tornar mais evidentes nos vinhos produzidos, Gilman diz que isso não significou trabalhar melhor nos vinhedos, mas investir em relações públicas. “Muitas vezes isso significa aumentar o orçamento de relações públicas ou contratar algum enólogo consultor da moda para tentar disfarçar o fato de que seus vinhos agora têm um teor alcoólico muito mais alto e são quase intragáveis por causa das mudanças climáticas.”

Isso se combinou à influência do crítico Robert Parker. O conceito de terroir (o clima e o lugar em que o vinho é feito) é subjugado por um gosto globalizado que ganha força, na opinião de Gilman. “No mundo do vinho pós-Parker, vêem-se alguns críticos de vinho dispostos a continuar elogiando cegamente álcool elevado e frutas cozidas, reflexos do aquecimento global.”

Em vez de avaliações isentas, muitas vezes se veem distorções. “Na minha opinião, há muitos críticos de vinho que veem seu papel como torcedores das vinícolas mais ricas ao redor do mundo, em vez de avaliadores honestos da qualidade intrínseca de um determinado vinho. É um sistema aparentemente corrupto. Mas o mundo do vinho hoje é simplesmente emblemático dos problemas muito maiores de corrupção e confusão ética em que nos encontramos enquanto o século XXI se transforma em um pesadelo distópico.”

Uma das razões de Gilman ter iniciado seu trabalho de crítico de vinhos foi ver esse ambiente à sua frente. Parou de ler o trabalho de outros e se concentrou no que acreditava. O mundo de vinhos mudou nessas décadas, além do aquecimento global e da influência da crítica. A nova geração tem buscado cada vez mais vinhos novos, fruto também da alta de preços e da renda em queda.

“Isso é bom ou ruim para o mundo do vinho? Eu entendo completamente o ímpeto de querer beber os vinhos cedo, pois certamente abri muitos vinhos jovens nos primeiros anos no mercado. Uma das razões é que o vinho está muito mais caro agora, tornando muito mais difícil construir uma adega para quem não é muito rico. Eu cresci na classe média, mas consegui construir uma adega para mim porque o vinho não era tão inacessível em termos de preço naquela época.”

O futuro? Difícil saber, mas para Gilman há uma porção de produtores que querem fazer bons vinhos respeitando o lugar em que são cultivados. Um jeito é confiar no seu gosto. O gosto é subjetivo, assim como a gastronomia, a leitura e a vida.

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