‘Obsoleto’: novo disco de Seu Pereira e Coletivo 401 mistura brega, rock e crítica social

Com mais de 15 anos de estrada, a banda paraibana Seu Pereira e Coletivo 401 lança seu novo álbum, Obsoleto, em turnê pelo Sudeste. O vocalista e compositor Seu Pereira falou com o Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato, sobre as influências do disco, o resgate do brega setentista e a resistência da música independente. “Sou de 77, e muita coisa já era. Estava cheio de CDs na estante, DVDs que não tenho onde assistir”, conta. A canção que dá nome ao disco brinca com a ideia de banda de rock em tempos digitais. “Continuamos nessa luta, insistindo nisso”.

O grupo se apresenta nesta sexta-feira (6), às 22h, na City Lights Music Hall, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, trazendo ao palco as novas faixas, que transitam entre a Música Popular Brasileira (MPB), o rock e o brega sem perder o sotaque paraibano. “A música brasileira, independentemente do estilo, e a nossa música também, não dá para definir dentro de uma bolha”, afirma. A escolha por manter a base em João Pessoa é uma das formas de reafirmar essa identidade. “Eu canto a Paraíba, o Nordeste, a minha cidade”.

Na entrevista, Seu Pereira também critica a forma como o poder público trata a cena alternativa. Em maio, um show da banda foi interrompido pela Polícia Militar em Campina Grande, na Paraíba, após o músico gritar “sem anistia”. Para ele, foi um ato de censura, legado da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). “Estávamos numa casa de show promovendo cultura, arte, não era vagabundagem. […] Por causa do governo passado, essa pauta foi incrementada: a caça à cultura, aos artistas, como se os artistas fossem vagabundos”, lamenta.

A banda segue agora com shows no Rio de Janeiro e se prepara para novas etapas da turnê pelo Norte e Nordeste, e com o projeto Travessia, ao lado de um grupo musical do Norte. Apesar dos desafios da estrada, Seu Pereira valoriza o apoio do público e a força das redes coletivas de financiamento. “Estamos ralando, mas já dá para seguir aqui e por lá. […] É mais importante o nosso público, nesse momento, ouvir nossas músicas, melhorar o nosso stream”, pede.

Confira a entrevista na íntegra:

Como foi o processo criativo do novo disco Obsoleto, da banda Seu Pereira e Coletivo 401, e quais foram as suas principais influências?

Já faz um bom tempo que viemos flertando com essas músicas mais setentistas. Eu passei a ouvir muito, de uns anos para cá, principalmente na pandemia, e aí as canções foram nascendo mais com essa pegada, essa harmonia, esse toque mais retrô. Quando eu compus “Obsoleto”, a música que dá título ao álbum, estava percebendo que sou de 77, e muita coisa já era. Eu estava cheio de CDs na estante, DVDs que eu não tenho onde assistir. Aí brinquei com isso, e acabou fazendo essa ligação com o que a galera, de repente, julga hoje como “obsoleto”. Essa ideia de lançar disco, uma banda de rock. Continuamos nessa luta, insistindo nisso.

Você falou sobre essa onda setentista, citou o Belchior também. O disco também remete a uma estética do brega, por exemplo, Odair José. Também tem o mix com Belchior… São cantores extremamente populares, mas alguns deles demoraram a ser reconhecidos pelo seu valor artístico, não é?

Demorou. Existiu um preconceito com Odair José. Hoje não, a galera consegue percebê-lo. Na Paraíba, cresci com Thiago Sombra, o baixista do Barra da Torre, nos botecos de esquina. Aquele ritmo do baixo mesmo, de Marcio Greyck e tantos outros cantores. O próprio Reginaldo Rossi… Isso, há um tempo atrás, era visto como “brega”, o brega como algo negativo. Hoje não. Enfrentamos isso, e trabalhamos muito bem com esses elementos. E o público adora, gosta muito.

A música Obsoleto dialoga com essa capacidade da banda de se reinventar sem perder a identidade. Como vocês equilibram inovação e tradição dentro da música brasileira e no trabalho de vocês?

Existe uma identidade muito forte da banda. Em 2022, lancei meu primeiro disco solo, o Módulo Lunar, com canções mais introspectivas. Mas qualquer canção que trabalhamos, conseguimos deixar com a cara do Coletivo. Nesse disco novo, Obsoleto, temos uma canção do Chico César, Autopistas, e uma canção de Chico Limeira, que é um compositor paraibano também, da nova geração. Então deixamos essa identidade. É engraçado que a galera quer ser uma banda de rock, mas às vezes nos classificam como nova MPB. Então acho que é isso: vamos fazendo o nosso trabalho e tentando nos enquadrar dentro da música popular brasileira.

É importante deixarmos de rotular as coisas? Você acredita que a música às vezes fala muito mais do que um simples rótulo?

Já tentaram nos colocar como música regional, pelo fato do sotaque. Só que, no final das contas, é música, é a música que está sendo feita no Brasil. A música brasileira, independentemente do estilo — brega, rock, MPB —, e a nossa música também, não dá para definir dentro de uma bolha, de um nicho, já que flertamos com vários estilos. É música brasileira.

O disco foi gravado em João Pessoa, um polo cultural do Nordeste. Como a cultura local e as questões sociais da Paraíba influenciaram as composições e a sonoridade desse novo trabalho?

O sotaque é forte. Durante muito tempo recebemos referências das bandas do Sudeste. Quando era adolescente, eu cantava meio “bicheando”, porque ouvia muito o rock dos anos 80 e 90. Até começar o movimento do Manguebeat, em Pernambuco, nosso estado vizinho. Acho que ele foi a grande e última revolução da música brasileira nessa questão de procurar uma identidade. A partir daí, anos 90, 2000, comecei a valorizar mais o sotaque e deixá-lo mais forte.

Eu canto a Paraíba, canto o Nordeste, canto a minha cidade. Tem canção em que falo da Praia da Penha. Essa canção de Chico César agora, gravei porque me identifiquei, fala de duas cidades da Paraíba, Rio Tinto e Mamanguape. Minhas avós nasceram nessas cidades.

No primeiro show da turnê, ontem em Belo Horizonte, falei sobre isso. Sei que a galera fica sem entender quando eu canto Rio Tinto, canto Mamanguape, mas é o que estamos falando. Para mim, é importante falar, cantar essas bandeiras.

O movimento Manguebeat vai ser homenageado, na pessoa do Chico Science, pela Escola de Samba Grande Rio, do Rio de Janeiro, com a presença polêmica da influenciadora Virgínia Fonseca como rainha de bateria. Como você vê essa apropriação de movimentos como o Manguebeat e do legado do Chico Science por outras culturas, em outros locais?

Acho interessante valorizar as passistas da sua própria comunidade. Isso é mais importante. Isso o Chico Science defenderia, já que o Manguebeat falava sobre o território, o chão dele, o mangue. Mas o movimento foi muito criticado por misturar o rock, a guitarra, o funk e tal. Então acho que ele não se incomodaria tanto com essa mistura, essa geleia geral, como ele mesmo falava.

Recentemente, houve um episódio envolvendo a interrupção de um show de vocês em Campina Grande. Ao que parece, a interrupção foi uma forma de censura, especialmente após manifestações políticas. Após um período em que a arte foi perseguida nos últimos 5 anos, ainda restam resquícios disso em instituições como a Polícia Militar?

É triste isso. E o mais triste de tudo é os profissionais da polícia não se enxergarem nessa condição. Eles trabalham para nós, para o povo, para a segurança. Estávamos numa casa de show promovendo cultura, arte, não era vagabundagem. Por causa do governo passado, essa pauta foi incrementada: a caça à cultura, aos artistas, como se os artistas fossem vagabundos.

O que aconteceu em Campina foi isso. A forma como aqueles policiais agiram foi intolerante, o show de repente terminou. Era só esperar. Eu gritei “sem anistia” no meio do show. Vinte minutos depois, por coincidência, alguém denunciou, e veio a polícia.

Numa cidade maravilhosa que é Campina Grande, onde a banda nasceu, apesar de eu ser de João Pessoa, acabou que isso se tornou algo interessante. Na hora, convoquei o público: “Não vai dar para terminar o show aqui, mas vamos para o Parque do Povo”, onde, naquele momento, estava acontecendo o maior show, com som ensurdecedor, todo tipo de música rolando para milhares de pessoas. E estavam pegando no pé de uma casa de show pequena.

Então fomos para o Parque do Povo, o povo foi junto, cantar junto. Foi um lance muito importante para a biografia da banda, para a nossa história.

Você acredita que existe uma diferença na forma como eventos independentes e grandes festas tradicionais são tratados pelas autoridades locais? Como isso afeta a cena musical alternativa da Paraíba?

Existe porque é uma questão de grana. É o dinheiro que manda. Eu até brinquei na hora, que achei bem incoerente: em frente ao Parque do Povo, tem quase 40 dias de som alto porque ali tem patrocinadores, empresas de bebida, muita grana envolvida, então é muito dinheiro para a prefeitura. Aí eles acabam pegando no nosso pé, dos artistas independentes, nessas casas de show que estão querendo promover cultura. Acho isso triste. O poder público deveria olhar melhor para isso, e não só na Paraíba, não só em João Pessoa. Isso acontece no Brasil inteiro, infelizmente.

No contexto de políticas públicas para a cultura, como que você avalia o impacto dos cortes e dessa desvalorização do setor cultural nos últimos anos para artistas independentes?

Quando gravamos o nosso primeiro disco, tivemos um apoio por meio da lei de incentivo cultural da prefeitura, que é importante para quem está começando. O poder público olha melhor para os empresários de cultura locais, para as casas, os espaços. Até mesmo em relação à contratação: em Campina [Grande] uma coisa incoerente que acontece é o São João, uma festa nordestina, o momento de ver grandes artistas, inclusive da nova geração, que leva essa bandeira do forró, da cultura popular, de repente, tem artista que não tem nada a ver com a cena em si. A questão de gênero é uma questão com o momento, o São João. Eles fazem isso justamente porque quem fala mais alto é a grana.

Ao mesmo tempo, eu acho que eu, como artista independente, a partir do momento que eu consigo caminhar com as próprias pernas… Claro que queremos que o poder público chegue junto, mas é interessante que consigamos conquistar esse público, como estamos fazendo no resto do Brasil. Eu prezo demais que o poder público olhe para os artistas populares, para a galera que está na colheita, trabalhando durante o dia e à noite faz aquela festa, que é o coco, a ciranda, o maracatu. Isso eu acho mais importante ainda: que olhem para isso.

Alguns dos discos da banda foram financiados de forma independente e contam com apoio direto do público. Como você vê o papel dessas redes de financiamento coletivo na democratização do acesso à cultura e na valorização de artistas fora dos eixos tradicionais do mercado musical?

Fundamental. Para o disco que lançamos em 2017, fizemos campanha em 2015, 2016 e ficamos surpresos como o público chegou junto. Nos sentimos abraçados. Esse último disco já foi graças a isso porque é aquela velha história de andar com as próprias pernas. O primeiro disco foi com apoio governamental. O segundo disco foi com apoio do nosso público. Hoje, estamos conseguindo essa performance, já bancar…

Que esse exemplo sirva para outros artistas. E que as pessoas valorizem realmente quem está começando, ralando para começar. Estamos ralando, mas já dá para seguir aqui e por lá, podemos nos inscrever em algum edital, como viemos nos inscrevendo, e também pedir ao nosso público. É mais importante o nosso público, nesse momento, ouvir nossas músicas, melhorar o nosso stream.

Vocês têm um show hoje em São Pauo, depois seguem para o Rio de Janeiro. Quais os planos para depois desses shows na região Sudeste?

Hoje vai ser na City Lights, [no bairro de Pinheiros, em São Paulo]. Ontem foi massa em Belo Horizonte. Muito feliz de estar lançando esse disco aqui no Sudeste, estamos nos sentindo em casa aqui porque as casas [estão] cheias, nos recebendo. Optamos por ficar em João Pessoa, e é raro para um artista que optou por ficar no seu canto se sentir abraçado nas outras regiões do Brasil.

Depois desse lançamento, voltamos para João Pessoa e vamos preparar, ver essa como vamos fazer esse lançamento no Norte e no Nordeste. Em julho, está vindo uma banda do Norte acampar para fazermos essa conexão Norte-Nordeste. Não está ligado ao lançamento do disco, à junção das duas regiões. O nome do projeto é Travessia, vamos sair de Natal até Aracaju, Sergipe, com essas duas bandas. Norte e Nordeste juntos.

Como é essa experiência? Vocês já viveram esse tipo de turnê coletiva?

Já. Parece glamouroso, mas a minha voz está rouca, na corrida de estrada e tal. Estou agora no meio do corredor do hotel fazendo o vídeo. É tudo muito corrido, muito rápido. Ja fomos de Natal até São Paulo, foi bem bacana. Quase 20 pessoas circulando. E aí tem tudo: diversão, arengaarengar na Paraíba, que é briga, confusão –, mas assim é a vida do artista independente. É cansativo, mas ao mesmo tempo é gratificante, ainda mais quando você chega e o público está lá, esperando.

Para ouvir e assistir

O jornal Conexão BdF vai ao ar em duas edições, de segunda a sexta-feira, uma às 9h e outra às 17h, na Rádio Brasil de Fato98.9 FM na Grande São Paulo, com transmissão simultânea também pelo YouTube do Brasil de Fato.

Repost

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *