Em 22 de abril de 1.500, a frota portuguesa de Pedro Álvares Cabral desembarcou em terras habitadas. Por aqui, os primeiros lusitanos encontraram os povos que habitavam a Pindorama. De acordo com Pero Vaz de Caminha, eram homens e mulheres “pintados de preto e vermelho”, com “cabelos lisos” e com suas “vergonhas descobertas”. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que naquele ano havia mais de 2 milhões de pessoas que hoje são chamadas de “indígenas” no território que hoje é conhecido como “Brasil” – pesquisadores apontam um número maior, de 3 a 5 milhões de habitantes.
Na famosa carta de Caminha, o português descreve os primeiros contatos com a população local. Segundo ele, os indígenas recusaram quase tudo o que foi oferecido: carneiro, galinha, pão e peixe cozidos, confeitos, mel, vinho. “Não quiseram comer daquilo quase nada, e se provaram alguma coisa, logo a lançavam fora”, descreve. Mas algo chamou a atenção daquelas pessoas: uma conta de rosário. “Fez sinal que lhas dessem (…) e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo”, cita Caminha em sua carta. Daquele momento em diante, iniciava o genocídio dos povos originários, com a cruz da Igreja Católica abençoando o etnocídio e a ambição europeia matando as pessoas que aqui viviam.
Passados 500 anos, o IBGE contabilizou a existência de 302.888 indígenas, um número sete vezes menor que em 1.500. No entanto, o Instituto considerava “índio” apenas quem vivia em terras indígenas – um reflexo do próprio etnocídio. Mudanças no entendimento sobre “o que é ser indígena” foi alterando os métodos de pesquisa, enquanto que o próprio movimento de resgate da ancestralidade vem aumentando o autorreconhecimento. O resultado é que, em 2022, o IBGE apontou um crescimento no número de indígenas, chegando a 1.693.535 pessoas. Portanto, os povos originários que um dia ocuparam 100% do território brasileiro, hoje representam 0,83% da população nacional.
Banho de sangue
A drástica redução da população indígena no país reflete o sucesso do projeto brasileiro implementado desde 1.500. Com o objetivo de invadir os territórios indígenas e roubar as riquezas naturais para enviar para a Europa, a Coroa portuguesa e outras monarquias europeias não pouparam esforços para exterminar os povos originários. Além dos assassinatos diretos, eles utilizaram outras estratégias, como a contaminação por doenças, a fome e a catequese.
Em 1816, por exemplo, houve o massacre do povo timbira. Fazendeiros e proprietários da terra invadida pelos europeus, em uma região de conflito no Maranhão, atraíram os indígenas à vila de Caxias, que à época enfrentava uma epidemia de varíola. Além da violência física que sofreram na emboscada, os Timbira foram contaminados e espalharam a varíola para toda sua comunidade.
Cem anos depois, táticas semelhantes continuavam a ser usadas. Em “Os índios e a civilização”, de Darcy Ribeiro, é citado um conflito no sul da Bahia, em que fazendeiros avançavam com suas plantações de cacau sobre as terras reservadas aos Pataxó e Kamakã. Para “abrir caminho”, os proprietários envenenavam a água e abandonavam utensílios contaminados com varíola para infectar os indígenas.
No entanto, apesar dos esforços das elites brasileiras e europeias, os povos originários não foram totalmente dizimados. A persistente resistência dos indígenas em se manterem vivos e cuidando do território vem desafiando o Estado brasileiro. Nas últimas décadas, diversas iniciativas foram tomadas para acelerar o genocídio. Durante a ditadura militar, por exemplo, ao menos 8 mil indígenas foram mortos, de acordo com a Comissão Nacional da Verdade. Outro momento oportuno para o Estado foi a pandemia da covid-19, em que o governo federal, comandado por Jair Bolsonaro, foi hábil em produzir mortes – estima-se que mais de mil indígenas morreram em decorrência do vírus.
Genocídio em curso
Entra governo e sai governo, as ameaças aos povos indígenas permanecem, alterando apenas o ritmo e intensidade dos ataques. Entre 2022 e 2024, por exemplo, 780 Yanomamis morreram em decorrência de doenças e subnutrição, de acordo com o Ministério da Saúde. A principal razão das mortes é a invasão de garimpeiros no território yanomami, disseminando doenças e devastando a floresta e seus rios – o mercúrio utilizado no garimpo também vem contaminando e adoecendo a população.
Além do garimpo, os territórios indígenas também vêm sendo alvo de madeireiros e traficantes de animais silvestres, com a cumplicidade do poder público. Basta lembrar do esforço do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles para interceder em favor de um esquema de exportação ilegal de madeira – o ex-ministro de Bolsonaro é réu acusado de orientar a emissão de certidões fraudadas para liberar uma carga que havia sido apreendida.
Outro setor que vem contribuindo para o extermínio indígena é o agronegócio. O segmento – um dos mais beneficiados pelas políticas públicas do governo federal – vem promovendo uma série de invasões às terras indígenas, ampliando suas propriedades e destruindo rios, igarapés, poços, roças e florestas para implementar, sobretudo, uma monocultura de grãos voltada para exportação. Isso tem gerado uma série de conflitos que deixam os povos originários em permanente estado de ameaça e feito derramar muito sangue em todo o país.
Em 2024, ruralistas organizados assassinaram Nega Pataxó, liderança Pataxó Hã-hã-hãe, no sul da Bahia. De acordo com os indígenas, o ataque da milícia contou com apoio da polícia militar, que teria aberto caminho para os invasores e também efetuado disparos. Casos como esse têm sido recorrentes em todas as regiões do país. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, somente no primeiro semestre de 2024 foram registrados 1.056 ocorrências de conflitos no campo, com boa parte em áreas da Amazônia.
Um projeto de Estado
Não satisfeitos com o ritmo dos assassinatos, os setores interessados nas terras indígenas pretendem acelerar o genocídio, através da aprovação do Marco Temporal. Influentes e muito bem representados no Congresso, tribunais de Justiça e governos federal e locais, madeireiros, garimpeiros e ruralistas seguem pressionando para anular o direito à terra assegurado aos povos originários na Constituição de 1988.
Em 2023, os genocidas sofreram um duro golpe do Supremo Tribunal Federal (STF) que rejeitou a tese do Marco Temporal – ela previa o ano 1988 como marco para definir a demarcação de terras indígenas. Em reação, parlamentares aprovaram a Lei 14.701, “legalizando” a tese do Marco Temporal – o projeto foi vetado pelo presidente Lula, mas o Congresso derrubou o veto no final de 2023. No entanto, em abril de 2024, o STF determinou a suspensão da tramitação de ações judiciais que questionavam a constitucionalidade da Lei, até que o tribunal se manifestasse definitivamente sobre o tema. Portanto, o imbróglio permanece e o Marco Temporal segue com chances de prosperar.
Em fevereiro de 2025, o ministro do STF Gilmar Mendes apresentou uma minuta com propostas que alteram os processos de demarcação de terras indígenas e permite a exploração do garimpo e outras atividades nos territórios. A proposta foi veementemente repudiada pelos movimentos indígenas e chegou a ser denunciada em relatórios da Organização das Nações Unidas. A ONU afirma ser um retrocesso e que vai na contramão do que se defende para mitigar as mudanças climáticas e garantir os direitos humanos.
Atentos ao lobby dos genocidas no STF, diversas mobilizações ocorreram em todo o Brasil. Em abril, indígenas Munduruku bloquearam, por catorze dias, a BR-230 em Itaituba, no Pará – a rodovia é bastante utilizada para o escoamento de milho e soja produzidos pelo agronegócio para exportação. Os manifestantes protestaram contra a proposta de Gilmar Mendes e exigiam uma audiência com o ministro. A pressão funcionou e no dia 15 de abril os Munduruku se reuniram com Gilmar Mendes. Na carta apresentada, os indígenas pediram aos ministros do STF “que respeitem a Constituição e digam não ao Marco Temporal; que parem de discutir os nossos direitos, que protejam o que resta de terra indígena (…) quem é invasor são vocês, que criaram leis e não estão respeitando, e sim violando os nossos direitos”.
Uma semana antes desse encontro, indígenas que participavam do Acampamento Terra Livre, em Brasília, foram alvo de ataques pela polícia legislativa, que atiraram bombas contra a população, incluindo crianças e anciãos. Às véspera do famigerado “Dia do Índio” – ressignificado para “Dia de Luta dos Povos Indígenas” – o que se viu foi uma série de ataques promovidos pelo Estado. No sul da Bahia, policiais civis e militares vêm levando terror à Terra Indígena Barra Velha.
O braço armado do Estado, das milícias ruralistas e até mesmo de facções, seguem utilizando a violência como estratégia para avançar sobre os territórios, mesmo que para isso seja necessário o uso da tortura e da morte. Com o lobby dos genocidas avançando no Congresso e no STF, a expectativa é que o extermínio da população indígena se acelere, caso a tese do Marco Temporal (sintetizada na Lei 14.701) prospere. O projeto brasileiro inaugurado em 1.500, portanto, segue em curso.
Qualquer proposta “conciliatória” que desconsidere a demarcação e proteção das terras indígenas e dos povos que nela vivem e preservam o território é puro engodo. Os povos originários sabem disso e, assim como seus ancestrais, seguem lutando e dispostos a enfrentar os genocidas, mesmo sabendo que estão enfrentando instituições, leis e armas feitas para lhes matarem e roubarem suas terras. Que ao menos o Estado tenha a decência de reconhecer o seu projeto genocida – que começou com a monarquia portuguesa e hoje atende aos interesses, sobretudo, de ruralistas, mineradoras, madeireiras e traficantes.