Com a lógica do algoritmo, a uberização reescreve a exploração – Artigo – CartaCapital

O mundo do trabalho vivencia sua fase mais aguda, desde a gênese do capitalismo, mergulhado em uma profunda crise estrutural, que pode ser assim resumida: o sistema não mais consegue acumular sem destruir. Com as fronteiras terrestres sob seu domínio, adentramos na era da acumulação do espaço sideral. Quadro que aflorou a partir de 1973 quando a trípode destrutiva – financeirização, neoliberalismo e reestruturação do capital – deu impulso para as tecnologias de informatização invadirem o mundo da produção na indústria e, em seguida, nos serviços privatizados, convertidos em excepcionais laboratórios de expansão dos capitais, potencializados pelos algoritmos, Inteligência Artificial, big data etc.

O moinho satânico, cunhado por Karl Polanyi, chegava à era cibernética. No mundo do trabalho vimos a explosão global do desemprego, sempre mais exacerbado no Sul Global, agravada em 2008 e 2009 e intensificada com a inesperada eclosão da pandemia. Essa realidade, além jogar nas alturas o desemprego, levou as grandes corporações a terem um novo leitmotiv. Com o toyotismo japonês, conhecemos a expansão ilimitada da terceirização, que nos trouxe ao trabalho intermitente, legalizado no Brasil com a “contrarreforma” trabalhista de Michel Temer, em 2017, logo depois do golpe que depôs Dilma Rousseff.

Assim chegamos ao trabalho uberizado, aquele que se expande nas grandes plataformas digitais, articulando, com indiscreto charme, os inventos digitais e algorítmicos, com a força de trabalho desempregada e ávida por qualquer labor. O Brasil, com uma taxa de informalidade entre 30% e 40%, foi solo fértil para essa empreitada. Mas urgia ainda encontrar uma denominação para dar vida à nova empulhação, de modo a burlar a legislação do trabalho. O reconhecimento da condição de assalariamento, por si só, obrigaria o cumprimento da legislação do trabalho que, vale recordar, foi resultado de lutas históricas da classe trabalhadora. No Brasil, a primeira greve foi dos ganhadores, trabalhadores negros que, em 1857 em Salvador, paralisaram o carregamento de mercadorias e indivíduos e exigiram a extinção de opressões que tipificavam a escravização. Ou a Greve Geral de 1917, em São Paulo, que paralisou diversas categorias do operariado, na luta por direitos básicos do trabalho.

O capitalismo do século XXI tem recuperado formas pretéritas de exploração vigentes nos séculos XVIII e XIX

Pois bem, em pleno século XXI, na era da explosão das tecnologias digitais que poderiam reduzir expressivamente a jornada de trabalho, as empresas forjaram “novas” modalidades de trabalhos, com um condicionante inquestionável, a cabal recusa em cumprir a legislação do trabalho. Apresentando-se como “empresas prestadoras de serviços e de tecnologia”, com o estrito objetivo de obliterar a condição real de assalariamento, o trabalho uberizado deslanchou. Assim, as grandes plataformas digitais “redefiniram” a condição de assalariamento, milagrosamente convertido em empreendedorismo.

Um aparente paradoxo aflorou: em plena era dos algoritmos, IA, ChatGPT, big data etc., o capitalismo do século XXI tem recuperado formas pretéritas de exploração, expropriação e espoliação do trabalho vigentes nos séculos XVIII e XIX. O crowdsourcing, tão cultuado hoje, é a variante digital e algorítmica do velho ­outsourcing, comum durante parte da Revolução Industrial, quando homens, mulheres e crianças trabalhavam em suas casas ou em espaços fora das fábricas, desprovidos de qualquer legislação do trabalho. Nos defrontamos, então, atualmente, com um novo espectro rondando o mundo do trabalho: a epidemia da uberização.

Mas não parou aí o tamanho do problema. Outro movimento tornou o trabalho ainda mais vulnerável, o advento da Indústria 4.0, criada para potencializar a automação, digitalização, a internet das coisas (IoT) e a IA. Seu objetivo precípuo é reduzir o trabalho humano, introduzindo mais máquinas digitais, robôs, ChatGPT etc., que passaram a se esparramar nas novas cadeias produtivas de (mais)valor.

O que vemos hoje, com a IA calibrada pelos capitais financeiros, já apresenta resultados catastróficos para a classe trabalhadora. Se sabemos que a tecnologia floresceu juntamente com o primeiro microcosmo familiar, é imperioso reconhecer que a tecnologia atual tem sido prioritariamente plasmada pelo sistema do capital, que só pensa naquilo, na sua valorização. O resto é pura balela. Ou alguém conhece uma grande corporação global que ampliou a IA, reduziu significativamente a jornada de trabalho e ainda aumentou substantivamente o salário dos trabalhadores e trabalhadoras?

A luta contra a jornada 6×1 mobiliza trabalhadores de todos os tipos. E a greve geral de 1917 em São Paulo – Imagem: Arquivo do Estado de SP e Tânia Rêgo/Agência Brasil

Atam-se, então, as duas pontas do mesmo processo destrutivo em reação ao trabalho. Ao mesmo tempo que a Indústria 4.0 elimina uma miríade de atividades laborativas, as grandes plataformas digitais incorporam essa força sobrante de trabalho em condições que remetem à protoforma do capitalismo.

Primeira nota: Lula ganhou as eleições de outubro de 2022, depois de um embate eleitoral árduo. Nos ­subterrâneos, gestava-se um plano golpista – o “Punhal Verde Amarelo” – urdido pelos neofascistas. Mas Lula sagrou-se vitorioso, vale reiterar, pelo voto majoritário da classe trabalhadora.

Dentre as propostas que defendeu em sua campanha, uma é essencial: vencendo as eleições, ele revogaria a (Contra)Reforma Trabalhista de Temer. Aquela que nos impingiu o trabalho intermitente, a prevalência do negociado sobre o legislado, o desmonte sindical, a forte retração da Justiça do Trabalho, a perda de direitos das mulheres trabalhadoras etc. Sem falar da Lei da Terceirização, que eliminou a diferença entre atividade meio e fim e propiciou a liberação geral da terceirização.

Será que Lula esqueceu dessa proposta?

O que pode explicar o PLP 12/2024, apresentado pelo governo em abril deste ano que em seu artigo 3º afirma: “O trabalhador que preste o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas (…) será considerado, para fins trabalhistas, trabalhador autônomo”.

Autônomo? Como assim? Desconsiderando as pesquisas acadêmicas sérias, feitas sem recurso financeiro das plataformas? Desconhecendo a Diretiva da União Europeia, recém-aprovada pelos 27 Estados da região, que parte da presunção do vínculo empregatício e indica também a necessidade imperiosa de controlar os algoritmos, programados para beneficiar exclusivamente as grandes plataformas.

Se esse PLP for aprovado, uma enorme parcela da classe trabalhadora será excluída da legislação do trabalho. Não terá férias, nem 13º salário, descanso semanal, FGTS, nenhum direito para as mulheres e ainda verá liberada uma jornada (ilegal) de até 12 horas por dia, por plataforma. Se aprovada, a porteira vai se escancarar de vez… E a conta vai sobrar para a história do Lula.

Segunda nota: As eleições municipais deste ano, se estão entre as mais negativas da história recente, ao menos ofereceram um lampejo crucial, ao tematizar vivamente a questão da jornada de trabalho (escala 6×1). Tema que tem sido tergiversado até mesmo pelas esquerdas dominantes, que se curvam às benesses do embuste do falso empreendedorismo.

A precarização estrutural do trabalho é uma tendência global

Daí a louvável exceção de um jovem trabalhador do comércio no Rio de Janeiro, que fez sua campanha, pelo PSOL, centrada na jornada de trabalho, apontando para a exploração do trabalho presente na escala 6×1. Ao tornar esse tema eixo de sua campanha eleitoral, questões vitais foram afrontadas: tempo extenuante de trabalho, intensidade da exploração, que impede que essa geração de trabalhadores e trabalhadoras possa dispor de um mínimo de vida dotada de sentido fora do trabalho. A alternativa: a jornada 4×3, quatro dias de labuta dura, e três de descanso, então, emplacou em cheio, enquanto outros, aqui e alhures, mostravam-se maravilhados com o falso empreendedorismo. E, ao aflorar uma das questões mais vitais do mundo do trabalho, jogou para o debate público uma “real” da tragédia cotidiana do trabalho.

Trabalhar, trabalhar, sem chance de estudar, sociabilizar, descansar, sem a possibilidade de viver um tempo maior fora da exaustão do trabalho. Isso porque a jornada 6×1 significa laborar em geral, cinco dias de trabalho, com oito horas cada, mais um dia de ao menos quatro horas, para totalizar as 44 horas semanais legais no Brasil. Que frequentemente se converte em 48 horas, especialmente nos serviços do comércio, hotelaria, bares, restaurantes, shoppings etc., onde a burla é muito frequente e muitos sindicatos carecem de força social ou têm perfil mais patronal. Sem esquecer as jornadas ilimitadas presentes no trabalho de motoristas e entregadores uberizados.

As máquinas não vão realizar o sonho do tempo livre dos seres humanos – Imagem: Universidade da Califórnia

Pior que o 6×1, ao menos para quem gosta de futebol, só mesmo o 7×1.

Última nota: Nestes tempos de trabalho digital, algoritmos, IA e assemelhados, está surgindo um novo espectro que ronda o mundo do trabalho. Trata-se do espectro da uberização. Como impedir essa tragédia?

Esse é o maior desafio da classe-que-vive-do-trabalho. E há um elemento novo e quase sempre desconsiderado no cenário social global. Ao mesmo tempo que a classe trabalhadora se mostra ainda mais heterogênea em seu mosaico laborativo, está em curso também uma forte homogeneização em suas condições de trabalho, uma vez que a precarização estrutural do trabalho é uma tendência global, diminuindo em alguma medida as diferenças entre Norte e Sul. Basta pensar no trabalho imigrante internacional.

Fonte, portanto, de novas ações e lutas da classe trabalhadora, base social imprescindível para que se possa reinventar um novo modo de vida. •


*Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/Unicamp. Publicou, entre outros, os livros O Privilégio da Servidão, Os Sentidos do Trabalho e Adeus ao Trabalho?

Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A era da uberização’



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