A descoberta de um tumor e a maneira serena de lidar com a situação só fizeram aumentar a mitologia em torno de Pepe Mujica. Aos 89 anos, o ex-guerrilheiro e ex-presidente do Uruguai é, ao lado de Lula, o maior símbolo progressista da América Latina. Um pensador, antes de tudo, como se nota nos trechos do livro–entrevista, entre longos silêncios e reflexões agudas, conduzido pelo jornalista Fabián Restivo, traduzido no Brasil por Rogério Thomaz Jr. e gentilmente cedidos pela Editora Coragem.
— Você tem esperança na humanidade?
— Tenho esperança biológica, porque os tempos são solidários. Intelectualmente, tenho dúvidas, mas no fim quem manda são as tripas. Seria bom incorporar esse conceito. É ideológico porque você não consegue dizer não à vida e tem a fantasia de ter de pensar nela. Por quê? Porque o único milagre que existe acima da terra para cada um de nós é o milagre de nascer, de estar vivo. Viemos do nada… e vamos para o nada! E há uma pequena licença dentro desse nada chamado vida. O que é a vida? Eu sei lá, uma aventura bioquímica. Não sei o que é.
— Existem muitas teorias.
— Existem muitas teorias, mas está aí, existe. E tem uma magnitude tão milagrosa! Mas claro, é uma ocorrência cotidiana, todos os dias acordamos. Mas o homem é um bicho complicado, o único que se suicida em certas condições.
— E é o único animal que prepara sua comida.
— Sim. E enterra os mortos.
— Prazer, morte, suicídio, enterrar os mortos. Entre uma morte e outra, o prazer de preparar a comida, o prazer de comer.
— Sim, e complicou bastante. O homem transformou isso em uma arte, ao menos alguns. Mas sabe qual é o melhor tempero para a comida? Ter fome.
— Claro, quando estás com fome, tudo é gostoso. O milagre do pão acaba sendo isso: quando estás com fome e não comes de verdade, um pedaço de pão é glorioso.
— É a aventura do trigo. O homem começou coletando sementes silvestres por aí, na Ásia Menor. Alguns teóricos dizem que o trigo é das montanhas, das encostas mais baixas das montanhas do Afeganistão. É uma ervinha que é espontânea. Eu não vi, mas naquela região as pessoas começaram a colher trigo. E aí ferrou, porque, como é um bicho complicado, disseram: “Ah, mas vamos plantar”. Isso foi há uns trinta mil anos. E aí, aos poucos, começou “o meu” e “o seu”.
— Claro. Se você quer trigo, vá procurá-lo onde o encontrei. Este arado é meu. Nós regredimos, não?
— Hoje, os antropólogos contemporâneos dizem que aqueles cento e cinquenta mil anos em que o homem andava como um caçador-coletor, um pouco mais, um pouco menos, comia muito melhor e adoecia menos. Porque comia com variedade. Bom, ele entrou no sedentarismo e na agricultura e começou com a monocultura, entendeu? Mas, claro, permitiu-lhe alimentar muito mais a população. Bom, você chega aqui há trinta mil anos e isso nos parece um ultraje. Mas na vida do planeta isso foi ontem.
— É um momento. A industrialização da comida, para alimentar tantos acaba matando gente.
— Claro. E jogamos fora cerca de trinta por cento da comida que fazemos. E na outra ponta está essa utopia: se os africanos pudessem comer como os cachorros da Europa, melhorariam seus níveis de proteína.
— Se os africanos pudessem ser vacinados como a Europa está sendo vacinada…
— Vão vacinar de qualquer jeito, é questão de tempo.
— Sim, mas nesta época de Covid e com tudo que está acontecendo, tem toda uma questão, né?
Porque a Europa se vacina, acumulam; mas, se eles não vacinarem o resto do mundo, vai chegar neles do mesmo jeito.
— Sim, sim. Mas eles estão com pressa por causa dos números, por causa da economia. Então, eles querem sair primeiro e depois vão distribuir. Mas primeiro eles.
— Sim, mas isso dura pouco. Porque, no momento em que três africanos entram na Europa por qualquer motivo, eles se ferram de novo.
— Provavelmente, eles vão viver com essa espada de Dâmocles. Mas as coisas são assim. Quem tem dinheiro e desenvolvimento ficou com o grosso das vacinas e os outros que esperem. Vão dar as vacinas que estão sobrando.
— Bem, foi o que os Estados Unidos fizeram com as vacinas que venceram agora. Dez dias antes do vencimento disseram que iriam doar um milhão de vacinas.
Palavras Para Depois: Conversas com Pepe Mujica. Fabián Restivo, tradução de Rogério Tomaz Jr. Editora Coragem (278 págs., 68 reais) – Compre na Amazon
— Também fizemos um gesto com o Paraguai, mandamos cinquenta mil.
— A vida acaba sendo gestos.
— Os gestos podem ser sempre para um lado e para o outro.
— O tema é a comunicação do gesto. Os médicos cubanos estão no Haiti há vinte e cinco anos, todos os dias.
— Sim, mas ninguém diz nada.
— E disso não se fala. Quando houve o desastre do Haiti, não o de agora, o de antes, os gringos chegaram com milhões de câmeras e quatro caixas de Band-Aid e foi como: “Putz, os Estados Unidos salvaram o Haiti!” Como eles manipulam a estética, né? Em segredo, colocam uma bomba e a fazem explodir um hospital. E em público te dão um pequeno frasco de mertiolate para curar.
− Sim, está cheio de contradições. Às vezes devido a interesses econômicos, às vezes devido a diferentes visões de classe. E às vezes por razões geopolíticas. E no meio este planeta.
Não
Estar abrigados no galpão nos salva de algumas gotas que antecipam a chuva. Ver chover faz parte da arte de não fazer nada na última deitada desta tarde. Observar as bolhas que as gotas formam na terra já molhada e acompanhá-las até ver o arco-íris formado pelo óleo deixado pelo trator em seu rastro, faz parte do momento. O que ele definiu quando disse: “O que o ser humano precisa é de tempo à toa. Tempo de fazer nada, olhar, pensar bobagens e respirar”.
Então é nessa que estamos. As explosões apaixonadas passaram e Pepe observa, sentado com os cotovelos apoiados nos joelhos, as mesmas gotas.
Pensei na pergunta e imaginei que iria estragar o momento, então esperei e a soltei lentamente, e com a certeza de uma resposta longa, aventurei-me a…
— Você sonha?
Pepe respondeu em voz baixa e sem parar de olhar as gotas na terra, mal soltou um…
— Não.
“A democracia tende a definir que somos todos iguais perante a lei, mas não somos todos iguais perante a vida”
E lá ficou sem horizontes distantes, nem azares da vida, nem ventos cruzados: “Não”. E o quase silêncio dessa quase chuva levou embora o resto da tarde.
Nos despedimos com o “amanhã nos vemos” de sempre e foi embora caminhando devagar com as mãos nos bolsos pelo caminho da cancela. Essa chuva nunca chegou.
Foi a primeira vez que Oso e eu voltamos em silêncio. A contundência sussurrada da resposta nos deixou assim, repassando o diálogo monossilábico do final:
— Você sonha?
— Não.
Esse é um inimigo difícil
— Na boa política você é movido por emoções, paixão, pelas campanhas do dia a dia, vencer, assumir um cargo. Sempre me lembro da imagem do Evo chorando quando Álvaro (Garcia Linera) coloca nele a faixa presidencial. Toda a sua história foi resumida ali. Lucía recebeu o seu juramento de posse. É um momento e tanto.
— É incrível, deve ser o único caso histórico. Tenho certeza. Foi a única vez na história que a companheira recebeu o juramento de posse.
— Como você sentiu isso?
— Sei lá, sou anticerimônias.
(…)
— Melhor, você estava esperando. Ultimamente, a questão da separação de poderes ficou complicada para mim. Você lembra que anteontem estávamos falando sobre o que é conhecido como o primeiro código de leis, o de Hamurabi, 1250 anos AC. O cara cria as leis para os babilônios em pedra, com o famoso “olho por olho, dente por dente”. Era uma monarquia e ele fala: “Essas são as leis, daqui em diante nós vamos nos organizar”. Tem coisas incríveis. Se a sua irrigação invadir a terra do vizinho, você terá de pagar a ele na proporção da produção que você inundou. Foi uma coisa assim, até municipal, que passou do pequeno para o grande. Depois, os gregos falam da separação dos poderes, dos juízes. Para mim, a função do juiz não é fazer justiça, é garantir o funcionamento do modelo que ele representa. E eles nos levam nesse sonho quando, em geral, na América Latina, quem detém o poder conduz também os outros poderes. Vemos isso na Argentina, vimos isso no Brasil.
À esquerda, no tempo da prisão, e durante a posse na presidência do Uruguai – Imagem: Miguel Rojo/AFP e Arquivo Pessoal
Um trabalhador das armas
— Pepe, tenho cerca de três ou quatro temas, mas tem um que está realmente explodindo agora. Talvez você tenha naturalmente, mas sem dúvida muito desenvolvida, a capacidade de se comunicar. Isso foi percebido ao longo do tempo e o transformou em uma pessoa que sempre tem o que falar. Como você vê e como lida com o tema da comunicação e com o grave problema que a esquerda sempre teve?
— Bem, veja, a esquerda se comunica mal e isso é um problema de origem. São dois capítulos. A mídia está sempre no meio porque, na medida em que vive da propaganda comercial, parece bastante lógico que as empresas vão financiá-la, ou melhor, que as empresas devam procurar financiar “os empresários”. Mas é também o conteúdo e a forma. Gôngora disse: “Fazer poesia é dizer uma coisa por outra, mas não qualquer coisa”. Essa é a questão. A poesia nunca é direta, colocam uma imagem, uma coisa. Aí vem a gente de esquerda que dá ênfase às coisas ideológicas, à questão do conteúdo, e não dá atenção à forma: abandona o aspecto das emoções, aposta na racionalidade. É tudo o contrário do que faz a propaganda comercial tradicional. O problema é que você tem de dizer certas coisas, mas dizê-las de uma forma que toque as emoções das pessoas, não apenas a razão. Porque, se você reduzir a parte emocional, as pessoas ficam entediadas e se acabam, não dão a mínima. As pessoas são atraídas pelo que podem sentir, depois podem raciocinar.
(…)
— Você disse que a democracia é um amor platônico que promete, mas não cumpre. Você ainda pensa da mesma forma?
— É claro, porque a democracia tende a definir que somos todos iguais perante a lei, mas não somos todos iguais perante a vida. Não é pouca coisa o que ela estabelece, porque é o primeiro sistema em que somos iguais perante a lei. Mas a tragédia dos jacobinos da Revolução Francesa, de que queremos igualdade sob os tetos em que vivemos, permanece aí e ainda está latente. Um pouco exagerada. •
Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mujica mora na filosofia’