O dia 9 de julho ficará marcado pela aprovação do PL 5.230 na Câmara dos Deputados. O PL tem por objetivo impor o chamado Novo Ensino Médio, e também propõe a construção de uma Política Nacional para o Ensino Médio brasileiro. É graças à pressão social e política e ao PL 2.601/2023 – de autoria deste Coletivo –, que o governo federal se viu obrigado a realizar uma consulta pública sobre o ensino médio em 2023 e a apresentar o PL votado ontem pela Câmara.
Em evidente diálogo nossa proposta, a proposta do governo procurou refletir (timidamente, é verdade) parte das aspirações vindas do campo educacional que empunhou a bandeira do #RevogaNEM. Centenas de pesquisas demonstraram que o NEM prejudicou milhões de estudantes e professores no país, especialmente por propiciar o aumento das desigualdades escolares.
Em 2016, antes mesmo da promulgação da Lei n. 13.415/2017, estudantes, profissionais da educação, pesquisadores e ativistas da educação pública – representados por movimentos sociais, associações científicas e organizações comprometidas com a garantia do direito à educação – já alertavam para os potenciais efeitos negativos da reforma do ensino médio.
Com o passar do tempo, as pesquisas e o cotidiano das escolas e salas de aula no país se encarregaram de desmoralizar a reforma do ensino médio perante a opinião pública.
A discussão doP L 5.230 na Câmara começou de forma conturbada e conflituosa. Primeiro porque o governo federal solicitou regime de urgência para a tramitação da matéria e, pressionado por educadores e estudantes, voltou atrás. Segundo porque o presidente Arthur Lira (PP-AL) indicou para a relatoria do PL o ex-ministro da educação do governo Temer, o deputado federal Mendonça Filho (União-PE), que logo se declarou imbuído do propósito de “aprimorar o legado” do ex-presidente.
Mendonça fracassou na tentativa de transformar o PL 5.230 numa mera reedição do NEM. Foi obrigado, por exemplo, a aceitar as 2.400 horas letivas para a formação geral básica. Mas, após acordo com o Ministério da Educação e a liderança do governo na Câmara, aprovou um texto piorado em relação ao PL original apresentado pelo governo. Já a relatora da matéria no Senado, a senadora Profa. Dorinha Seabra (União-TO), teve postura diferente da de Mendonça. Promoveu audiências públicas, propiciou o tempo necessário para que os senadores apresentassem emendas e só apresentou o seu relatório após a construção de um consenso mínimo em torno de temas centrais.
Como resultado, o Senado melhorou o texto da Câmara, acolhendo inclusive emendas sugeridas por este Coletivo e por outras entidades. Granjeou apoios de todos os movimentos que há anos vinham exigindo a revogação do NEM. Esperava-se, dessa forma, que os deputados reconhecessem a demanda popular e acolhessem as mudanças promovidas pelo Senado.
Esperava-se, já que o processo de aprovação final do texto na Câmara mostrou o espírito antidemocrático de Arthur Lira. Até poucas horas antes da votação, não se conhecia o texto a ser votado. Iniciada a deliberação, o presidente da Câmara não permitiu que os parlamentares apresentassem os destaques que divergiam de pontos essenciais do relatório apresentado por Mendonça Filho. Os deputados sequer puderam registrar o voto nominal no painel eletrônico.
É inconcebível que matéria de tamanha importância para o país seja apreciada no atropelo, sem publicidade e sem tempo mínimo de análise. Arthur Lira, é bom lembrar, nunca assumiu compromisso com a educação pública e com seus processos democráticos. Diferentemente do governo Lula, do qual se esperava outra postura. Apesar disso, logo após a primeira aprovação do PL 5.230 na Câmara, o líder do governo, deputado José Guimarães (PT-CE), fez questão de anunciar que não apoiaria nenhum aprimoramento ao projeto feito pelo Senado.
Quando o texto voltou da casa revisora com alterações positivas (que tornariam o ensino médio menos excludente e elitista), assistimos ao silêncio do ministro da Educação Camilo Santana (PT-CE) – indício de que um acordo regressivo (envolvendo o ex-ministro de Temer, as fundações e institutos empresariais e o governo Lula) estaria em construção. Não à toa, foram esses os personagens que correram às redes sociais para comemorar a aprovação do texto da Câmara logo após a votação de 09 de julho.
O texto final do PL 5.230 aprovado pelo Congresso manteve diversos pontos essenciais da lei que instituiu o famigerado NEM – e piorou outros tantos: a não garantia da predominância de oferta do Ensino Médio Integrado nos Institutos Federais; a oferta de ensino presencial mediada por tecnologias ou na modalidade EaD; a manutenção do notório saber para a docência; a ausência da língua espanhola como componente curricular obrigatório; a possibilidade de oferta de parte da carga horária do ensino médio por instituições privadas; o redesenho do Enem e de outros exames vestibulares a partir dos chamados “itinerários formativos”; o estímulo ao trabalho precoce a partir possibilidade de validar horas de trabalho como carga horária letiva; e a existência de carga horária diferenciada na formação básica para os ensinos médios técnico e propedêutico (o primeiro com 300 horas a menos).
O tema da carga horária merece um comentário particular, pois foi intensamente comemorado pelo ministro da educação e por agentes de fundações e institutos empresariais que tentaram ao longo de todo o processo legislativo (trabalhando nos bastidores) reduzir a carga horária das disciplinas básicas dos estudantes brasileiros.
O texto aprovado no Congresso amplia a carga horária da formação geral básica para o ensino médio de um teto de 1.800 horas (Lei n. 13.415/2017) para um mínimo de 2.400 horas (ensino médio propedêutico) e de 2.100 horas (ensino médio com itinerário formativo técnico-profissional). Portanto, amplia a carga horária das disciplinas básicas, mas cria uma segmentação interna nos sistemas de ensino, em prejuízo de quem necessita de uma formação científica consistente para ingressar na educação superior pública ou para finalizar o ensino médio com uma formação cidadã.
Vale lembrar que a carga horária mínima de 2.400 horas na formação básica para todos/as foi defendida por este Coletivo em abril de 2023 e incorporada ao texto do PL n. 2.601/2023, apresentado por líderes da base do governo Lula meses antes do PL elaborado pelo MEC.
O golpe impetrado na Câmara dos Deputados, seja pelo atropelamento do debate e pela votação simbólica, seja pela rejeição dos avanços contidos no texto do Senado, foi comemorado por fundações/institutos empresariais que ressaltaram que a essência da reforma de 2017 foi mantida. É nosso dever lembrá-los, todavia, que grande parte dos problemas do Novo Ensino Médio também foi mantida. E que não levará muito tempo até que tais problemas sejam sentidos pelos estudantes e profissionais da educação nas escolas do país.
Num momento em que os oportunistas que sempre tentaram rebaixar o ensino público dos mais pobres comemoram como vitória os tímidos avanços obtidos com o PL 5.230, não podemos esquecer que a própria existência do PL se deve à pressão de estudantes, profissionais da educação, pesquisadores/as e movimentos em defesa da educação como direito.
Apesar de Mendonça, dos acordos espúrios e dos oportunistas de variados matizes, a reforma do ensino médio de Temer e das fundações/institutos empresariais foi parcialmente derrotada. O que esses agentes comemoram é a reversão parcial – via acordão entre a direita e o governo – de sua derrota moral diante da sociedade brasileira.
Um projeto de nação alicerçado no desenvolvimento social, econômico e cultural do seu povo, na superação das desigualdades sociais e educacionais, sustentável e soberano, demanda a construção de uma escola pública à altura. Não será privando os/as estudantes do pleno acesso ao conhecimento científico e a uma formação ética e estética que assegure o direito à educação de qualidade que construiremos uma sociedade livre, plural e democrática.
O assunto da reforma do ensino médio não está encerrado. Estamos diante de um novo início. A luta pela educação pública de qualidade continua!
Assinam este texto:
Ana Paula Corti (IFSP | REPU), Andrea Caldas (Setor de Educação/UFPR), Andressa Pellanda (Campanha Nacional pelo Direito à Educação), Ângela Both Chagas (UFRGS), Carlos Artexes Simões (CEFET-RJ), Carlota Boto (FE/USP), Carmen Sylvia Vidigal de Moraes (FE/USP), Catarina de Almeida Santos (FE/UnB), Christian Lindberg (UFS | OBSEFIS), Cleci Körbes (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Cristiano das Neves Bodart (CEDU/UFAL), Daniel Cara (FE/USP | Campanha Nacional pelo Direito à Educação), Elenira Oliveira Vilela (IFSC | Sinasefe | Intersindical CCT), Elizabeth Bezerra Furtado Bolzoni (UECE), Fernando Cássio (FE/USP | REPU), Filomena Lucia Gossler Rodrigues da Silva (IFC), Gaudêncio Frigotto (UERJ), Idevaldo Bodião (Faced/UFC), Jaqueline Moll (Faced/UFRGS), Jean Ordéas (FE/USP), Lucas Barbosa Pelissari (FE/Unicamp), Manoel José Porto Júnior (IFSul | Direção Nacional do Sinasefe), Márcia Aparecida Jacomini (Unifesp | REPU), Marcos Goulart (Faced/UFAM), Maria Ciavatta (UFF), Marise Nogueira Ramos (Fiocruz | UERJ), Mateus Saraiva (Faced/UFRGS), Monica Ribeiro da Silva (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Nilson Cardoso (UECE), Rafaela Reis Azevedo de Oliveira (Faced/UFJF | ABECS), Renata Peres Barbosa (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Salomão Barros Ximenes (UFABC | REPU), Sandra Regina de Oliveira Garcia (UEL), Sergio Stoco (Unifesp | Cedes | REPU) e Thiago de Jesus Esteves (CEFET-RJ | ABECS).
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.